sexta-feira, 28 de março de 2014

O inaceitável risco da igualdade

Quando se delineia, mesmo ao longe, a chance da demolição da casa-grande e da senzala, a vocação golpista dos privilegiados se estabelece
Faz pouco tempo, a chamavam Revolução, com r grande, e ainda há quem assim a chame. O Brasil inovou ao batizar desta forma um golpe de Estado. O ex-ministro do STF e presidente da Câmara durante o “mandato” do ditador Ernesto Geisel, Célio Borja, em entrevista à Folha de S.Paulo, sustenta hoje, aos 85 anos, que a partir de 1º de abril de 1964 o Brasil teve “um regime de plenos poderes”. Não sei como o ilustre jurista definiria ditadura. Primeiro de abril, disse eu, mas se o golpe se deu nesse dia, ou em 31 de março, tanto faz. De todo modo não ocorreu de mentirinha. Mentiras monumentais houve para justificá-lo, e algumas continuam a ser proferidas.
Como Moniz Bandeira logo adiante escreve, o governo dos Estados Unidos teceu, de caso pensado ou de crença própria (de americanos tudo cabe esperar), um magistral enredo de pura ficção para mobilizar, debaixo de sua bandeira, diplomatas, espiões, mestres em tortura, tropa e até um porta-aviões. Segundo os ficcionistas de Washington, o Brasil preparava-se para enfrentar uma guerra civil, provocada pela insurgência de comunistas de inspiração cubana, como se sabe canibais de criancinhas. Os reacionários nativos, instalados solidamente na casa-grande, engoliram mais umbest seller ianque, e lhe acrescentaram capítulos decisivos, com a colaboração dos editorialistas dos jornalões.
Soprava o entrecho que a subversão ensaiava sua marcha e a intervenção militar era recomendada, ou melhor, indispensável. A invocação prolongou-se in crescendo desde o instante em que o vice-presidente João Goulart assumiu o posto abandonado por Jânio Quadros, o tragicômico homem da renúncia, antes contida enquanto durou o imbróglio parlamentarista, enfim em tons de desespero quando Jango mandou às favas o sistema de governo inventado para cerceá-lo e retornou ao presidencialismo. A história prova que Goulart era um democrata sincero, nenhuma das suas atitudes, do começo ao fim do mandato constitucional, demonstra o contrário. Quanto à marcha da subversão, nunca a vi passar.
Outra marcha desfilou diante dos meus olhos estupefactos, a “da família, com deus e pela liberdade”. Dirigia então a redação deQuatro Rodas, instalada na capital paulista em um prédio da Rua João Adolfo, esquina da Avenida 9 de Julho. Na tarde do 19 de março de 1964, dia de São José, o resignado padroeiro da família, deixei a redação e andei não mais que 500 metros para alcançar a esquina da Rua Marconi com Barão de Itapetininga, onde estacionei para assistir ao desfile.
Vinham na frente os sócios do Harmonia, clube mais elegante de São Paulo, acompanhados por seus fâmulos, mucamas, aias, capatazes, colonos, jardineiros, motoristas, cocheiros, massagistas, pedicuros, manicures etc. etc. Em seguida trafegaram os sócios do Clube Paulistano (sinto por eles, menos faustosos que o Harmonia), também seguidos por seus serviçais, em número menor e mesmo assim expressivo. Depois passaram os demais, em ordem decrescente, ditada ou pelo clube frequentado, ou pelo bairro da residência. Na rabeira, os remediados, irrefreáveis aspirantes a inquilinos da casa-grande. Sobrevoava o cortejo o governador Adhemar de Barros, de helicóptero em voo quase rasante, desfiava o rosário guardado na algibeira do colete.
A “marcha da família”, capaz de incomodar o Altíssimo e negar a liberdade que diziam defender, revela a verdadeira natureza do golpe de Estado que precipitou a ditadura. A qual é, ou não é. Como a de Hitler, de Mussolini, de Stalin. E não excluamos Franco, ou Salazar, e os fardados de quepe descomunal em toda a América Latina. No caso de Fidel Castro, é natural que tenha merecido uma avaliação especial por parte de quem viveu a condição de relegado ao quintal dos Estados Unidos. De minha parte, confesso, não me agradam personagens que atravessam a vida de uniforme.
Irrita, de todo modo, que seja comum ler ou ouvir a referência à ditadura militar brasileira. Quiséssemos ser precisos, afirmaríamos ditadura civil e militar. A bem da verdade factual, há de se reconhecer que nos começos de 1964 não seria missão impossível atiçar os nossos fardados, e na tarefa o governo americano, e os privilegiados do Brasil, por meio dos seus porta-vozes midiáticos, saíram-se à perfeição. A tal ponto que eles próprios, jornalistas inclusive, acabaram por acreditar no enredo criado em Washington, pelo qual a guerra civil batia às portas. Houve até civis graúdos que estocaram armas nos porões e nas adegas.
Calibrados para a intervenção, os militares cumpriram o seu papel de gendarmes da casa-grande, de exército de ocupação, e com notável aparato partiram para a refrega de fato impossível. A renúncia de Jânio Quadros deveria ter sido lição profícua. Este sim, ao contrário de Jango, pretendia provocar a reação popular e errou dramaticamente. No mesmo dia, o Santos jogava em terra estrangeira e o povo comprimia-se nos bares para ouvir a irradiação. Reação houve, delirante, aos gols de Pelé.
A 1º de abril, ou 31 de março, que seja, vieram os blindados e os canhões, Carlos Lacerda armou-se de fuzil e fez do Catete uma trincheira. O golpe se deu, porém, com a imponência de um corriqueiro desfile de 7 de setembro. Houve um ou outro episódio de violência aqui e acolá, enfrentamento nunca. As calçadas não ficaram manchadas de sangue. Os militares executaram o serviço sujo com a eficácia e o risco de quem vai à guerra sem inimigo. Do outro lado, havia idealistas, sonhadores, nacionalistas, esperançosos de um futuro melhor para um país que amadurecia lentamente demais para a contemporaneidade do mundo.
Brasil padeceu de várias desgraças ao longo de cinco séculos. A colonização predatória, a matança dos aborígenes, três séculos e meio de escravidão, uma independência sem sangue, uma proclamação da República perpetrada por obra de um golpe de Estado militar, a indicar o caminho convidativo daí para a frente. O entrecho de desgraças, entre elas a carga mais deletéria representada pela escravidão, cujos efeitos permanecem até hoje, influenciou profundamente a história do século passado. Dominada em boa parte por Getúlio Vargas, um estadista, decerto, ao pensar um Brasil moderno, e também ditador no primeiro período da sua atuação, o que não depõe a favor.
golpe de 1964, reforçado na sua essência daninha pelo golpe dentro do golpe de 1968, uma vez imposto o Ato Institucional nº 5, é a última das desgraças. A mais recente, e de repercussões duradouras. Leiam, por exemplo, o texto de Vladimir Safatle, mais adiante. A derrubada de Goulart assinala o enterro de um processo que levaria o Brasil bem mais longe do que se encontra hoje. Não imagino, está claro, a chegada da marcha da subversão para impor uma ditadura também, embora de esquerda, mesmo porque as lideranças disponíveis, os cassados daquele momento, estavam longe de mirar neste alvo. Digo lideranças como o próprio Jango, Brizola, nem se fale de Juscelino.
Mudanças sensíveis se dariam aos poucos, caso não ocorresse uma reviravolta armada, no espaço de uma ou mesmo duas décadas, a partir das chamadas reformas de base, encabeçadas pela reforma agrária, indispensável em um país em que 1% da população é dona de cerca de 50% das terras férteis. As circunstâncias favoreceriam o surgimento de partidos autênticos em lugar de clubes recreativos de uns poucos sócios, a representarem, quase todos, os interesses do privilégio. Baseado no parque industrial paulista, o mais desenvolvido de todo o Hemisfério Sul, brotaria um proletariado consciente da importância e da força do seu papel, e portanto sindicatos dignos deste nome.
O golpe de 1964 aconteceu exatamente por causa da perspectiva renovadora que apavorava os senhores. Chega a ser ridículo invocar a ameaça da guerra civil, como alega Célio Borja na entrevista à Folha de S.Paulo, e como alegam muitos outros como ele, convictos de que é da conveniência do Brasil ser satélite de Tio Sam, bem como manter de pé a casa-grande e a senzala, da qual vale convocar eventuais marchadores. Os senhores escravocratas do século XXI ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (ou de 500?), certos do velho axioma, melhor prevenir do que remediar. Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma. Aquele já fez alguns estragos, esta é sua criatura, donde para ela a berlinda é automática.
Sempre que ouço pronunciar a palavra redemocratização padeço de um sobressalto entre o fígado e a alma. É justa e confiável a democracia em um país que ocupa o quarto lugar na classificação dos mais desiguais do mundo? Os senhores do privilégio querem é uma democracia sem povo e um capitalismo sem risco. De qualquer forma, à democracia não basta promover eleições periódicas, mas algo é mais grave, nesta instância do pós-ditadura: o espírito golpista ainda lateja nas entranhas da sociedade, como vocação inapagada e impulso natural.
De um lado há a fé em um recurso extremo, porém disponível ad aeternitatem, como aspiração latente em caso de necessidade. Do outro lado, o medo, enraizado nos demais, mal acostumados. Raros os brasileiros que, ao se arriscarem a vislumbrar a possibilidade de uma situação de agitação social, não temam a solução golpista. Há quem suponha que, a esta altura, exageram em temores. Há também quem sustente que basta pensar para tornar o pior admissível.
Agrada-me relembrar Raymundo Faoro, que sustentava a competência da direita, tranquila vencedora em 1964. A respeito discutíamos. Na minha opinião, o nível da competência é determinado pela qualidade do adversário. O que me impressiona, isto sim, é a ausência de adversários à altura desta direita tão, como direi, medieval, responsável pelo brutal oximoro: um país grande por natureza e forte por vocação se vê tolhido por uma elite prepotente, arrogante e ignorante. Deste ponto de vista, a ditadura brasileira tem, aquém ou além da tragédia, ou a despeito da tragédia, um aspecto patético. Quantos perseguiu e até matou e agora são, ou seriam, tucanos convictos, inequivocamente bandeados para a reação?
Com a premissa de que o acaso é entidade insondável, faltou uma esquerda capaz de acuar os donos do poder, como se deu em muitos outros países habilitados à democracia e à civilidade. Para ser de esquerda atualmente é suficiente empenhar-se a favor da igualdade, conforme recomenda Norberto Bobbio, cujo ensaio a respeito Fernando Henrique leu sem proveito algum. Nesta quadra, pretensamente de redemocratização ou, pelo menos, de democratização, o Brasil não conta, na quantidade necessária, com batalhadores da igualdade. Salvo melhor juízo.

FONTE: cartacapital

Quem ganha e quem perde com as CPIs


Primeiro passo é rasgar a fantasia. A CPI proposta, para apurar o caso Pasadena, tem duas ameaças objetivas e um propósito subjacente.

As ameaças:

- Deixar Dilma Rousseff sangrando durante as eleições.

- No limite, batalhar por um impeachment.

O propósito: barganhar.

O governo Dilma conseguiu juntar um conjunto de fatores desfavoráveis - mas que, dependendo do ângulo que se olhe, podem ser vistos como positivos.

Barganhou pouco com o Congresso e com os grupos de mídia, mesmo pecado de Fernando Collor.

Apesar da visão desenvolvimentista, do esforço e dos mimos às federações empresariais, não é vista como um deles. Também não é vista como representativa dos movimentos sociais e sindicais.

Por outro lado, mantém imagem de seriedade, terá o que mostrar na campanha eleitoral - daí a pressa da oposição. E tem o trunfo de ser conhecida por todos. Portanto, é garantia de previsibilidade – ainda que de uma previsibilidade desanimada -, ao contrário dessa maluquice de abrir a Caixa de Pandora de uma CPI.

Também tem a seu favor todos os grupos que não acreditam no potencial dos candidatos da oposição. Além, obviamente, da imensa massa de seguidores de Lula.

A aventura da CPI é um coquetel fantástico, que, quase sempre, mistura conspiradores, oposicionistas, políticos negocistas, meios de comunicação com interesses variados, de políticos a comerciais - em suma, a elite do subdesenvolvimento político-empresarial brasileiro. Vale para todos os tempos, inclusive para os tempos de PT oposição.

Assim como na crise de Vargas em 1954, como em 1964, na campanha do impeachment de Collor, papel central é ocupado pelos grupos de mídia e por sua capacidade de insuflar a opinião pública. Cabe a eles criar o clima, soltando matérias em cima de matérias, fundamentadas ou mesmo sem fundamento visando gerar a catarse.

Por aqui, uma notícia falsa - a de que Dilma fora conivente com a cláusula put (absolutamente usual em contratos dessa natureza) alimentou por quatro dias o denuncismo da imprensa. Mas ainda houve pausas e fôlego para esclarecer a informação.

Em uma CPI, será literalmente impossível. Serão uma denúncia e dez factoides por semana. Daí essa atração perigosa por CPIs.

Na campanha do impeachment de Collor, durante dias falou-se que ele movimentava milhões em sua conta pessoal, sacando e aplicando diariamente. E era apenas uma conta comum dos bancos, de reaplicação diária do saldo, o chamado overnight.

Criado o clima irracional, abre-se a Caixa de Pandora e os desdobramentos posteriores serão imprevisíveis, com a possibilidade de aparecer novos protagonistas não previstos inicialmente - como o grupo militar da Sorbonne em 1964.

Por aí se entendem dois movimentos prévios da mídia, procurando afastar dois atores potenciais:

- As críticas surpreendentes da Globo à intervenção militar de 1964 - inclusive através do Jornal Nacional.

- A operação desmonte Joaquim Barbosa. Como todo movimento que junta interesses variados, há a necessidade de um avalista moral. O candidato natural seria Joaquim Barbosa. Por imprevisível e incontrolável, foi descartado. Agora, tratam de trazer a cena a imagem simbólica de El Cid, o Campeador, esse Varão de Plutarco de nome Fernando Henrique Cardoso.

Quem ganha com a CPI
Imagine-se que a Operação CPI seja bem sucedida.

Todos os atores envolvidos terão ganhos expressivos:

1. Grupos de mídia.

Voltarão a ter a imensa influência que obtiveram pós-impeachment e certamente acesso a facilidades para essa dura travessia para o mundo de competição da era digital.

2. Aécio e Eduardo Campos.

Já se apresentaram como os novos líderes da oposição e já ensaiaram pactos que assegurariam uma governabilidade, caso a crise se agrave.

3. Senadores e parlamentares em geral.

A CPI não sendo bem sucedida, todas as emendas parlamentares - que os grupos de mídia vivem apregoando como o veneno da democracia - serão liberadas, graças a essa parceria grupos de mídia-baixo clero. Sendo bem sucedida, estarão bem situados na próxima orquestração política.

O que não se combinou com os russos
É evidente que trata-se de uma aposta de alto risco, na qual os grupos podem sair vitoriosos... ou derrotado.

Então, se houver bons estrategistas de seu lado, terão que ponderar os seguintes fatores fora de controle:

- Em 1964 havia um partido rachado, o PTB, sem uma liderança única, e com baixa ascendência sobre os novos incluídos. Agora, tem-se um partido orgânico, o PT, sob a liderança de um político, Lula, com fôlego para levantar o país.

- Se fosse em 2010, ter-se-ia um STF maioritariamente partidarizado e um Procurador Geral da República engrossando o coro. Agora, não, há um STF legalista.

- Em 1964 havia o tenentismo ainda uma voz influente nas Forças Armadas, organizando a reação e sendo fortalecido pela quebra de hierarquia militar. Agora, não mais, embora as comissões da verdade incomodem.

- Em 1964, tinha-se a guerra fria e o fantasma presente de golpe dos dois lados - ainda que para um dos lados fosse apenas uma miragem.

- Tinha-se também uma situação econômica difícil, com inflação e estagnação econômica. Agora tem-se uma economia andando de lado, mas com os menores índices de desemprego da história. E, em que pesem os erros cometidos, muito longe do caos econômico de 64.
- Finalmente, teve o Comício da Central e a assembleia dos marinheiros, liberando forças incontroláveis. Agora, há cuidados.

Mais ainda. Uma radicalização do quadro político agravará sensivelmente o quadro econômico, produzirá uma guerra política sem quartel.

Quem quer bancar?

Quem perde com a CPI
Não sendo bem sucedida a operação, como ficarão os grupos?

1. Grupos de mídia.

Será a derradeira cartada. Cada demonstração excessiva de poder provoca desgastes consideráveis e aumenta os anticorpos daqueles que denunciam a cartelização da mídia. Os impactos sobre a economia terão efeitos pesados sobre a publicidade e sobre a situação financeira já combalida de muitos grupos.

2. Aécio e Campos.

Abrem mão da imagem de bom mocismo e apostarão firmemente na radicalização. Se derrotados, são varridos do mapa político; vitoriosos, se tornarão reféns dos grupos de mídia e da radicalização política brasileira.

3. Senadores e parlamentares em geral.

Os espertos saberão como barganhar e pular para o barco mais sólido. Mas arcarão com o desgaste pelas turbulências econômicas que vierem a provocar.

As saídas óbvias
Há dois tipos de impaciência alimentando a crise.

A da oposição é conhecida: a perspectiva de não apenas perder as eleições para a presidência da República mas para dois estados chaves, São Paulo e Rio.

Mas o combustível maior é de outra natureza.

Há tempos as pesquisas vinham apontando que o eleitor quer mudanças com Dilma Rousseff.

Quando a presidente não acena com nenhum sinal de mudança, persiste em uma teimosia férrea, não acata nenhuma crítica, nem as fundamentadas, alimenta a marola que, persistindo a teimosia, transforma-se em inundação.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Câmara aprova Marco Civil da Internet


Após cinco meses de polêmica e intensos debates, a Câmara aprovou hoje (25) o projeto do Marco Civil da Internet (PL 2.126/11). Os deputados aprovaram o texto em votação simbólica. Desde 28 de outubro de 2013, o projeto passou a trancar a pauta da Câmara.
O projeto define os direitos e deveres de usuários e provedores de serviços de conexão e aplicativos na internet. A aprovação abre caminho para que os internautas brasileiros possam ter garantido o direito à privacidade e à não discriminação do tráfego de conteúdos. O texto agora segue para o Senado e, caso seja aprovado lá também, irá para sanção presidencial.
“Hoje em dia precisamos de lei para proteger a essência da internet que está ameaçada por praticadas de mercado e, até mesmo, de governo. Assim, precisamos garantir regras para que a liberdade na rede seja garantida", disse o relator do projeto deputado Alessandro Molon (PT-RJ).
Antes da votação, um grupo de manifestantes entregou ao presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), uma petição com mais de 340 mil assinaturas a favor do Marco Civil da Internet. Na ocasião, Alves disse que o projeto já estava "amadurecido"para ir à votação.
Entre os principais pontos da proposta estão: a garantia do direito à privacidade dos usuários, especialmente à inviolabilidade e ao sigilo de suas comunicações pela internet. Atualmente, as informações são usadas livremente por empresas que vendem esses dados para o setores demarketing ou vendas.
Os provedores não poderão fornecer a terceiros as informações dos usuários, a não ser que haja consentimento do internauta; os registros constantes de sites de buscas, os e-mails, entre outros dados, só poderão ser armazenados por seis meses. O projeto também define os casos em que a Justiça pode requisitar registros de acesso à rede e a comunicações de usuários.
De acordo com o texto, as empresas não vão poder limitar o acesso a certos conteúdos ou cobrar preços diferenciados para cada tipo de serviço prestado.
Antes da votação, o governo recuou e aceitou alterar alguns pontos considerados polêmicos por parlamentares da oposição e da base aliada. O principal deles é o princípio da neutralidade de rede que assegura a não discriminação do tráfego de conteúdos. Após negociação os deputados acordaram que a regulamentação deste trecho da lei caberá a um decreto da Presidência da República, depois de consulta à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI)
Também caiu a obrigatoriedade das empresas provedoras de conexão e aplicações de internet manterem em território nacional estrutura de armazenamento de dados, os chamados data centers.
A obrigatoriedade havia sido incluída após as denúncias de espionagem do governo brasileiro, por parte dos Estados Unidos, revelados pelo ex-consultor que prestava serviços à Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) norte-americana, Edward Snowden. Como forma de punição para a violação das comunicações, ficou assegurado no texto que deverá ser “obrigatoriamente respeitada a legislação brasileira”.
“Felizmente, o governo recuou e o relator acatou a sugestão da oposição e retirou do texto a obrigatoriedade de data centers no território brasileiro”, disse o líder do DEM, Mendonça Filho (PE).
Outro ponto do projeto é o que isenta os provedores de conexão à internet de serem responsabilizados civilmente por danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros. Isso só ocorrerá se, após ordem judicial específica, o provedor não tomar as providências para retirar o conteúdo da rede.
Nesses casos, o projeto determina que a retirada de material com cenas de sexo ou nudez deve ocorrer a partir de apresentação pela pessoa vítima da violação de intimidade e não pelo ofendido, o que poderia dar interpretação de que qualquer pessoa ofendida poderia pedir a retirada do material. Agora, a retirada deverá ser feita a partir de ordem judicial.
Além disso, o relator também incluiu um artigo para prever que os pais possam escolher e usar programas de controle na internet para evitar o acesso de crianças e adolescentes a conteúdo inadequado para a idade. “O usuário terá a opção de livre escolha da utilização de controle parental em seu terminal e caberá ao Poder Público em conjunto com os provedores de conexão a definição de aplicativos para realizar este controle e a definição de boas práticas de inclusão digital de crianças e adolescentes”, discursou Molon.
Após diversas negociações, o governo conseguiu com que os partidos contrários ao marco civil mudassem de ideia. O PPS foi o único partido que votou contra o projeto. O PMDB, que era contra a proposta, mudou de opinião e defendeu a aprovação. "Continuo com uma parte do receio de que a internet chegou onde chegou por falta de regulação", disse o líder do partido na Casa, Eduardo Cunha (RJ), que justificou a mudança de postura como fruto de negociações do governo e da alteração de pontos considerados polêmicos no texto.  "O PMDB vai se posicionar favoravelmente ao projeto", completou.
A aprovação do Marco Civil da Internet foi vista como uma vitória pelo líder do governo na Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP). "Eu acho que é uma vitória porque nós vivemos momentos variados, o mínimo que eu posso dizer sobre esta matéria é que houve tensões. A paciência e determinação em buscar através de um diálogo, independentemente de quem quer que seja, isso é uma grande vitória", disse Chinaglia.

FONTE: agenciabrasil

A família entre utopia e realidade:uma reflexão teológica




Antes de abordarmos, suscintamente, a questão complexa da família (1), faz-se mister conscientizar uma verificação sem a qual toda nossa reflexão se apresentaria viciada ou condenada ao irrealismo. É o fato de que a família, mais que qualquer outra realidade, participa da ambiguidade inerente à condição humana que nos faz simultaneamente dementes e sapientes, sim-bólicos e dia-bólicos, numa palavra, nos revela a coexistência da luz e da sombre e de intrincadas de contradições que existem em cada um de nós. Por isso, por um lado, a família encerra altíssimos valores e, por outro, contem   deformações lamentáveis. Dai viver em permanente crise, com chances de acrisolamento (donde vem a palavra crise) e de crescimento ou também com riscos de decadência e de deterioramento de sua situação.

       1. Família: utopia e realidade

Não obstante esse dado primeiro, não desaparece em nós  dimensão utópica, vale dizer, aquele horizonte de sentido que nos chama sempre a melhorar e a não nos resignar à realidade dada. Recusamo-nos aceitar passivamente a situação decadente. Queremos superá-la. Não secundamos um pragmatismo preguiçoso, sem sonhos e destituído de vontade de aperfeiçoamento, que simplesmente administra a crise, tirando vantagens onde pode, mas sem um projeto de criação de novos modelos de convivência. Infelizmente, esta é a tendência dominante, particularmente, no quadro da pós-modernidade para a qual qualquer coisa vale (anything goes) ou só vale o que está na moda.

Entretanto, uma pessoa ou uma sociedade que já não sonha e que não se orienta por utopias, escolheu o caminhou de sua decadência e de seu desaparecimento. Sem utopia não se alimenta a esperança. Sem esperança não há mais razões para viver e o desfecho fatal é a auto-destruição. Por isso é de fundamental importância a dimensão utópica em tudo o que empreendemos, também com referência à família, mesmo com a consciência de que jamais alcançaremos a utopia. Não obstante isso, esta desempenha função insubstituível, pois a ela relativiza as realizações históricas concretas e mantém o processo sempre aberto a novas incorporações. Numa palavra, a utopia nos fazer andar. Jamais alcançaremos as estrelas. Mas que seriam nossas noites sem elas? São elas que espantam os fantasmas da escuridão e nos enchem de reverência face à “grandeur” e à majestade de um céu estrelado. Porque temos estrelas, não tememos a escuridão.

Precisamos, portanto, de uma utopia para a família, para que continue humana, lugar de realização a dois no amor e na confiança, digna de procriar novas vidas para esse mundo e para Deus.

       Quando confrontamos, entretanto, a família humana com a Família divina que é a SS. Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo e a sagrada família de Nazaré, de Jesus, Maria e José, estas contradições que referimos saltam aos olhos. O risco é a produção de um discurso paralelo: exaltar, por um lado, as excelências da Família divina e da sagrada Família de Nazaré e apontar e, por outro, as mazelas da família humana, sem um real confronto entre elas.

Outro risco, mais frequente na produção escrita e falada dos cristãos é apresentar, por cima das cabeças, a utopia cristã da família, sem tomar a sério os desafios que vêm da família atual, sob a pressão violenta de transformações de toda ordem que ocorrem na sociedade, nas formas dos relacionamentos humanos e de coabitação entre pessoas que querem viver juntas. O discurso cristão, então, soa irrealista, sem responder às demandas reais dos cristãos.

       Nossa reflexão   procura manter a dialética entre o utópico e o real contraditório. Partiremos dos desafios do real para, então, confrontá-lo com utópico. Desta forma, esperamos  fazer justiça às duas dimensões e estaremos em condição de criar  espaço para inspirações que incentivam a criatividade face à realidade histórico-social que nos toca sofrer e viver.

       2. A família e as transformações histórico-sociais

       A família padece  pesadamente das influências da cultura dominante, hoje mundializada. Esta se caracteriza por processos sociais que colocam a economia como eixo estruturador de tudo. Esta economia e seu maior instrumento, o mercado, se regem por uma feroz competição deixando totalmente à margem a cooperação e os valores da solidariedade, fundamentais para a vida humana e para a família. Ela trouxe inegáveis benefícios para a condição humana, especialmente as comodidades da vida cotidiana, a medicina, os transportes, a comunicação e tantas outras mas também a agravou porque está mais interessada em oferecer bens materiais do que qualquer outra coisa. Os valores não materiais, ligados à gratuidade, ao amor, à solidariedade, à fraternidade, à troca e à espiritualidade ocupam um lugar irrelevante quando não são feitos também mercadorias, colocadas na banca do mercado e exploradas por conhecidos pregadores televisos ou por todo um mercado de literatura de auto-ajuda que mais ilude que ilumina.

Ora, destes valores altamente positivos vive fundamenalmente a família. Lamentavelmente constatamos que nossa cultura não oferece as condições concretas e adequadas para a família viver com normalidade tais valores e alimentar seu sonho. Antes, destrói, para a grande maioria das famílias, a infra-estrutura que lhes permite subsistir, viver o amor e exercer o cuidado para com os filhos/filhas. Isso porque a riqueza é pessimamente distribuída. Esta injustiça social globalizada dá origem a milhões e milhões de famílias empobrecidas, marginalizadas e excluídas. Separações e divórcios campeiam de forma assustadora. As maiores vítimas são as crianças a quem se negam as condições fundamentais que ocorrem nos três primeiros anos, de elaborar, em conctato com a mãe e em seguida com o pai, as disposições básicas que vão orientar toda a vida: o sentimento de pertença, a percepção de cuidado, de proteção, o sentido dos limites e da partilha, valores fundamentais que orientam todo o percurso da  vida.

Como se depreende, nosso tipo de organização social não prima pelo cultivo de valores nem se submete a critérios éticos coletivos que ultrapassam interesses individuais. A dimensão espiritual é privatizada ou se apresenta extremamente anêmica. Tal atmosfera não propicia ambiente favorável a uma família bem integrada e sadia nem lhe subministra motivações para resistir aos apelos da erotização generalizada dos meios de comunicação inclusive os chats eróticos e de namoros virtuais via internet, que tanto debilitam os laços da fidelidade e do afeto conjugal, nem lhe oferece auxílios em momentos de crise.

A este cenário familiar dramático somam-se ainda as profundas transformações sociais e tecnológicas  que afetam pesadamente o estatuto da família como a precarização do  trabalho, os horários e as longas horas de  transporte. As formas tradicionais de família estão ameaçadas de desaparecimento.

A família clássica patricentrada que distribuía os papéis consoante o gênero, privilegiando o pai e o esposo está cedendo lugar à família participativa, onde marido e mulher assumem todas as tarefas num sentido  cooperativo, aspecto esse que deve ser positivamente valorizado.

 O que está se impondo  hoje por causa da urbanização acelerada do mundo é a famílianuclear: pai/mãe e filhos/filhas. Este tipo de família por força do regime de trabalho do casal (ambos trabalham fora), terceiriza funções que antes eram próprias da família: o cuidado do bebê por uma babá ou empregada e depois pela creche, a arrumação da casa, a preparação da comida, o cuidado pelos idosos e doentes. Tudo isso é feito por pessoas pagas para realizarem estas tarefas. Ao casal restam as relações intersubjetivas do afeto, da convivência e do companherismo.

A família ampliada que engloba a todos do mesmo laço de sangue, tende, especialmente nas metrópoles, a se diluir.    A grande família que encerrava a todos os que viviam sob o mesmo teto, familiares, parentes, inquilinos e empregados ficou reservada, praticamente, a alguns grandes latifundiários de terras que vivem relações arcaicas.

A família dos ancestrais se restringiu às famílias de notáveis, por algum título nobiliárquico ou outro qualquer. Elas  ainda cultivam tradições e  memórias genealógicas, mas geralmente o fazem num sentido socialmente conservador e elitista. Não determinam mais o sentido da família original.

3.Desafios das novas formas de coabitação

Ao lado das famílias-matrimônio que se constituem no marco jurídico-social e sacramental, mais e mais surgem as famílias-parceria (coabitação e uniões-livres) que se formam consensualmente fora do marco institucional e perduram enquanto houver a parceria, dando origem à família consensual não conjugal.

A introdução do divórcio dá lugar a famílias unipessoais (a mãe ou o pai com os filhos/filhas) ou   multiparentais (com filhos/filhas provenientes de matrimônios anteriores) com conhecidos problemas de relacionamento entre pais e filhos/filhas. Por fim, crescem no mundo todo as uniões entre homoafetivos (homens e mulhares) que lutam pela constituição de um quadro jurídico que lhes garanta estabilidade e reconhecimento social.

Não queremos emitir um juízo ético sobre estas formas de coabitação. Precisamos antes entender o fenômeno. Concretamente: como conceituar a família face às várias formas como ela está se estruturando?

Um especialista brasileiro, Marco Antônio Fetter, o primeiro entre nós a criar a Universidade da Família com todos os graus acadêmicos, asssim define:”a família é um conjunto de pessoas com objetivos comuns e com laços e vínculos afetivos fortes, cada uma delas com papel definido, onde naturalmente aparecem os papéis de pai, de mãe, de filhos e de irmãos”(2).

Transformação maior, entretanto, ocorreu na família com a introdução de preservativos e de anticoncepcionais, hoje incorporados à cultura como algo normal, fazendo com que o discurso contrário da Igreja hierárquica católica pareça a alguns críticos, extemporâneo, e no caso da AIDS, até demasiadamente rigorista. Os próprios cristãos, de resto fervorosos e determinados a acolher as prescrições oficiais, têm dificuldades de assumi-los. Acresce ainda que com os preservativos e a pílula, a sexualidade ficou separada da procriação e do amor estável.

Mais e mais a sexualidade bem como o matrimônio são vistos como chance de realização pessoal, incluindo ou não a procriação. A sexualidade conjugal ganha mais intimidade e espontaneidade, pois, pelos meios contraceptivos e pelo planejamento familiar fica liberada do imprevisto de uma gravidez não desejada. Os filhos/filhas deixam de ser consequência fatal de uma relação sexual mas  são queridos e decididos de comum acordo. Esta perspectiva é libertadora não obstante o risco do individualismo e do fechamento da família sobre si mesma.

A ênfase na sexualidade como realização pessoal propiciou o surgimento de formas de coabitação que não são o matrimônio. Expressão disso são as uniões consensuais e livres sem outro compromisso que a mútua realização dos parceiros ou a coabitação de homoafetivos, homens e mulheres.

Tais práticas, por novas que sejam, devem incluir também uma perspectiva ética e espiritual. Importa zelar para que sejam expressão de amor e de mútua confiança. Se houver amor, para uma leitura cristã do fenômeno, ocorre algo que tem a ver com Deus, pois Deus é amor (1Jo 4,12.16). Então, não cabem preconceitos e discriminações. Antes, cumpre ter respeito e abertura para entender tais fatos e  colocá-los também diante de Deus, como insinuou o Papa Francisco em sua curta entrevista no avião regressando da Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro. Se o casal homoafetivo vive um compromisso  e assumir a relação  com responsabilidade não se lhe pode negar relevância religiosa e espiritual. Cria-se uma atmosfera que ajuda superar a tentação da promiscuidade e reforça-se a fidelidade e a estabilidade que são bens de toda relação entre pessoas, seja por via do matrimônio ou de outra forma de coabitação. Então, antes de moralizar, procurar compreender.

Se há sexo sem procriação, pode haver procriação sem sexo. Trata-se do complexo problema da procriação in vitro, da inseminação artificial e do “útero de aluguel”. Toda esta questão é extremamente polêmica em termos éticos e espirituais e não parece que se tenha chegado a um consenso seja na sociedade seja nos pronunciamento das Igrejas.

Geralmente a posição oficial católica, expressa, por exemplo, na encíclica de João Paulo II, Evangelium Vitae tende a uma visão naturista, exigindo para a procriação a relação sexual direta dos esposos, quando, é razoável se admitir a legitimidade da união de um óvulo da esposa com um espermatozóide do marido de forma artificial e depois implatar óvulo fecundado no útero, desde que tal procedimento seja imbuido de amor e de adesão à vida.

Para encurtarmos a reflexão sobre esta questão tão complexa que não cabe aqui ser tratada, valemo-nos da  opinião de um especialista holandês católico:

“A tecnificação da procriação humana não é sem problemas. A inseminação artificial em suas diferentes formas, a fecundação in vitro e o transplante de embriões, todas estas possibilidades técnicas nos permitem, por um lado, tratar o espermatozóide e o óvulo como ‘material biológico’, e com eles fazer procedimentos técnicos e tomá-los como objeto de pesquisas científicas, e, por outro, realizar uma gravidez fora dos quadros seguros do casamento tradicional. Assim é possível que uma mulher engravide por inseminação artificial com esperma de um doador anônimo; pode-se reunir in vitro espermatozóides e óvulos e implantá-los depois em uma mulher qualquer; pode-se ter um filho por meio de uma ‘mãe de alguel’. Estes meios técnicos não estão, de forma neutra, à nossa disposição enquanto capacidade puramente instrumental”(3). Exigem um discernimento ético e a criação de uma ambiência de amor, de mútuo apoio e de calorosa acolhida da vida que vem.

Numa palavra: eles devem permanecer como instrumentos a serviço do amor, da ajuda a esposos com problemas e sempre no respeito à sacralidade da vida.

Não basta a procriação artificial. O ser humano tem direito de nascer humanamente, de um pai e de uma mãe que em seu amor o desejaram. Se por qualquer problema, recorre-se a uma intervenção técnica, nunca pode-se perder a ambiência humana e o correto propósito ético.

O filho/filha que daí procede deve poder ter nome e sobrenome e ser recebido socialmente. A identidade social, nestes casos, é mais importante, antropologicamente, que a identidade biológica, como no caso de Jesus em sua relação com José. Este dando-lhe um nome e inserindo-o em sua descendência davídica, garantiu a Jesus identidade social. Ademais, é importante que a criança seja inserida num ambiente familiar para que, em seu processo de individuação, possa realizar o complexo de Electra em relação à mãe ou o de Édipo em relação ao pai, de forma bem sucedida. Desta forma se evitam danos irreparáveis pelo resto da vida.

O que se deve, entretanto, impedir é que a procriação humana  seja entregue à instituições tecnológicas com seus especialistas que manipulam “material genético” pois seria a inaguração do terrificante “Admirável Mundo Novo”(1932) de Aldous Huxley, violando a sacralidade da vida e dispensando o que há de mais excelso e divino no ser humano que é sua capacidade de amar e pelo amor conjugal transmitir a vida, a maior criação da complexidade do universo e o supremo dom de Deus.

4. A Sagrada família e a família moderna

Depois desta agenda de problemas, alguém, seguramente, poderia perguntar: que tem a ver o arquétipo cristão de família que é representada pela família de Nazaré de Jesus, Maria e José, com a atual e contraditória família humana? Como ela  nos pode iluminar e inspirar?

Antes de qualquer resposta possível, cumpre reconhecer a radical diferença de situações e de modelos de família. Não  há apenas uma distância temporal de mais de dois mil anos, mas também uma distância cultural considerável. A família de Nazaré vivia a cultura agrária e das pequenas vilas, ligada diretamente à relações primárias. Nós viemos da cultura tecno-científica cheia de aparatos que nos criam um mundo de segunda mão. Neste nivel, Nazaré não nos poderá dizer, diretamete, nada. Habitamos em mundos diferentes.

Mas isso não é tudo o que se pode dizer. Ela, ao contrário, nos tem muito a dizer. Mas o que nos tem a dizer, se situa num outro nivel e  pode interessar a todos. Tanto lá como aqui, estamos às voltas com pessoas humanas que amam, que se angustiam, que tem perplexidades, que buscam sentido, que trabalham, que cuidam, seguem as tradições de seu povo e  que são tementes de  Deus. Todas estas pessoas são habitadas por sonhos, valores e propósitos de felicidade e paz. E também acometidas de angústias e medos como, segundo os evangelistas, por ocasião da fuga da família de Nazaré para o Egito porque Herodes ameaçava de morte o filho recém nascido.

 Toda família ou toda forma de coabitação e convivência entre humanos, seja de gêneros distingos ou do mesmo gênero,  por mais diferentes que sejam suas modalidades históricas, vivem, não de técnicas nem de arranjos, mas da vontade de encontrar e viver o  amor,  sonham em inserir-se bem na comunidade (era o que significava “ser justo”, aplicado a José) e ser minimamente felizes. O núcleo imutável da família é o afeto, o cuidado de um para com o outro e a vontade de estar junto, também abertos à procriação de novas vidas.  Este é o lado permanente, dentro do lado cultural cambiante.

Se assim é,  então, não devemos, em primeiro lugar, considerar o caráter institucional da família (a perspectiva dominante nos documentos eclesiásticos e nas reflexões dos teólogos) mas seu caráter relacional. Importa ver o complexo jogo de relações que se realiza entre os parceiros. Nestas relações é que está a vida, funcionam os sonhos e as utopias de amor, fidelidade, encontro e feliidade, numa palavra,  aparece o lado permanente. O lado institucional é socialmente legítimo, mas não é originário, ele é derivado, histórico e cambiente conforme as diferentes tradições. Por isso pode assumir as mais diversas formas. Nele a vida já vem enquadrada e  normas presidem as relações. Mas tais delimitações somente perduram com sentido quando são alimentadas pelo húmus do sonho, do afeto terno e pela intercomunhão.

Aceitas estas premissas, o que nos tem a dizer a família de Nazaré? Exatamente esse lado de relação, de amor, de cuidado, de piedade e de fidelidade a três: entre Jesus, Maria e José. Eles se transformaram em arquétipos cristãos que, num nível profundo e coletivo, continuam a alimentar o imaginário dos fiéis e a suscitar valores que dão sentido e trazem felicidade à família. É aquilo que chamamos modernamente de capital social familiar.

Estudos transculturais revelaram que a quantidade e a qualidade de tempo em que os membros da família passam juntos vivendo relações de afeto e de pertença são determinantes para os comportamentos individuais e para as opções sociais que serão tomadas. Se o capital social familiar se apresenta alto e sadio dá origem a uma maior confiança no próximo, há menos violência e corrupção. Em consequência, há mais participação nas associações, nos movimentos sociais e no voluntariado. Os conflitos familiares e o número de divórcios caem surpreendemente. Quando o capital social familiar vai se diluindo, lentamente emergem situações críticas com desfechos muitas vezes dramáticos senão trágicos.

Podemos imaginar que o capital social familiar de Jesus, Maria e José era altíssimo. Logicamente, sabemos pouco do dia-a-dia da sagrada Família. A pesquisa histórica e exegética levantou os dados sócio-históricos mais seguros especialmente nos últimos anos com os métodos refinados da arqueologia e da antropologia da vida cotidiana (cf. J. A. Pagola e J. H. Crossan entre outros). Mas Independente desta pesquisa, ao analisarmos o José da história, que de profissão era artesão e campones mediterrâneo, depois esposo, pai, educador e “homem justo” veremos que ele é representante legítimo da família normal judaica, piedosa, ordeira e trabalhadora.

Eu diria até que José inaugurou uma forma de coabitação absolutamente nova e até escandalosa para a época: casa com uma mulher grávida (Mt 1,18; Lc 1,27) que, depois é informado, ser grávida pelo Espírito Santo (Mt 1,20; Lc 1,35). Tem a coragem de levá-la para sua casa (Mt 1,24), quem sabe, tendo que enfrentar os comentários dos vizinhos e as suspeitas dos parentes, como insinuam com razão os evangelhos apócrifos.

Não precisamos detalhar os valores que esta família teve que viver,  como já referimos, ao fugir do sanguinário Herodes, no desconforto do exílio, com a perplexidade face ao menino que já desperta com consciência própria no Templo em Jerusalém e, que por fim, segue seu próprio caminho, sem que Maria e os demais parentes o entendam completamente (cf. Mc 3,23 quando querem pegar Jeus porque acham que ficou louco).

Ora, estes valores foram vividos outrora e são vividos do mesmo jeito, hoje em dia, por tantas famílias, por parceiros de vida ou por outros que optaram viver juntos com coragem, com fidelidade, com responsabilidade e, não raro, com uma dimensão religiosa e espiritual.

A questão é superarmos certo moralismo que não ajuda a ninguém, prejulga as várias formas de família ou de coabitação e que nos faz perder os valores que podem estar ai presentes, vividos com sinceridade pelas pessoas. Na verdade, são tais realidades que contam numa perspectiva ética e valem diante de Deus.

O valor maior da doutrina da Igreja sobre a família reside exatamente nisso:  recordar sempre de novo os valores perenes e trazer à consideração dos cristãos e às demais pessoas de boa vontade a perspectiva utópica da família. Infelizmente nem sempre a Igreja é compreendida, porque  ela mesma não sabe esclarecer o gênero  literário da utopia e do mundo dos valores. Utiliza demasiadamente o rigor da doutrina e menos a compreensão cordial, ”a revolução da ternura” e a misericórida, tão enfatizadas pelo Papa Francisco.

Seja como for, são inconsistentes as críticas mais frequentes de que, via de regra, trata-se de uma doutrina abstrata e irrealista. Se entendermos a função da utopia e de sua linguagem, como esclarecemos acima, estamos em condições de valorizar positivamente a função da doutrina eclesiástica, como poderoso reforço do capital social  familiar.

Partindo das realidades que os documentos dos Papas não desconhecem, o ensino a Igreja bebe sua inspiração deste fundo utópico da sagrada Família de Jesus, Maria e José. A partir dela, se alimenta uma visão altamente humana e  esperançadora da vida em família.

       Não obstante todas as contradições reais, desta iluminação podem surgir possíveis alternativas e novos caminhos ao lado e junto a outras instâncias que na sociedade também se empenham por resgatar a família e dar-lhe a centralidade que possui para a vida em todas as suas etapas de realização.

Assim o faz, por exemplo,  João Paulo II. na Carta Apostólica Familiaris Consortio (1981) e na Carta às Famílias (1994). Em ambos os documentos, enfaticamente se afirma que a família é uma comunidade de pessoas, fundada sobre o amor e animada pelo amor, cuja origem e meta é o divino Nós(4).

Na Familiaris Consortio predomina, curiosamente, a dimensão de relação sobre a dimensão de instituição. Define-se a família “por um complexo de relações interpessoais – relação conjugal, paternidade-maternidade, filiação, fraternidade – mediante as quais cada pessoa humana é introduzida na família humana”(5)

São estas relações interpessoais que fazem dela uma comunidade de pessoas: ”A família, fundada e vivificada pelo amor, é uma comunidade de pessoas: dos côngues, dos pais e dos filhos, dos parentes”(6). A comunhão caracteriza a família:”A lei do amor conjugal é comunhão e participação, não a dominação”(7), valores que fazem da família, como bem o diz o Catecismo da Igreja Católica “um símbolo e imagem da comunidade do Pai e do Filho no Espírto Santo”(8), a “Igreja doméstica”(9).

Que seria da família e dos parceiros se não ardesse neles a utopia? Não é próprio do amor e das relações intersubjetivas de afeto e de cuidado, a linguagem  do sonho e da exaltação? Não se chamam com frequência os esposos de “meu bem”, “meu amor”? Sem esse motor que continuamente anima a caminhada, sem esse nicho de sentido, ninguém suportaria as dificuldades inerentes a toda relação intersubjetiva, nem as limitações da condição humana decadente e lábil. O capital social familiar iria desaparecendo.

São estes valores que abrem a família para além dela. O sonho mesmo é que a partir dos valores da família, em suas diferentes formas, surja a família-escola, a família-empresa, a família-comunidade, a família-nação e a família-humanidade, para se chegar enfim, à família-Terra, trampolim derradeiro para a família-Deus-Trindade.

Portanto, os valores e inspirações que deram vida à família de Nazaré, continuam a sustentar as relações conjugais, as parcerias humanas e todos os que celebram o sentido da vida na relação de amor e de intimidade. O Deus-Trindade que  penetrou tão profundamente na condição familiar pela trindade de Nazaré, a ponto de ai se personificar, continua assistindo os seres humanos em suas buscas. As formas e os caminhos podem variar, não varia, entretanto, o amor e a comunhão que movem os corações humanos na direção de um ao outro e na direção do grande Outro que é Trindade de Pessoas, intercambiando eternamente vida, amor e comunhão.
Estas esparças reflexões querem animar a discusão sobre o tema da família, proposto pelo Papa Francisco para ser examinado por todo o povo de Deus, em todas as dioceses, paróquias e grupos de base. Desta discussão tão vasta e divesificada nascerão, seguramente, perspectivas novas que nos ajudarão a entender a família que sempre existiu e as novas formas de coabitação surgidas nos últimos tempos.

Notas

1)A bibliografia sobre a família e o matrimônio é infindável. Como não pretendemos erudição sobre o assunto veja os seguintes estudos a título de orientação: os dois números da revista internacional Concilium, o nº 55 de 1970 e o nº 260 de  1995; Bach, J. M., O futuro da família: tendências e perspectivas, Vozes, Petrópolis 1983; Id., Evolução do amor conjugal, Vozes, Petrópolis 1980; Schillebeeckx, E., O matrimônio- realidade terrestre e mistério de salvação, Vozes, Petrópolis 1969; Vidal, M., Moral do matrimônio, Vozes, Petrópolis 1982; um casal de leigos cristãos, Esther Brito Moreira de Azevedo e Luiz Marcello Moreira de Azevedo, Matrimônio – para que serve este sacramento? Vozes, Petrópolis 1997; CNBB, Casamento e família no mundo de hoje – textos seletos do magistério eclesial, Vozes, Petrópolis 1994; Boff, L., O sacramento do matrimônio: símbolo do amor de Deus para com os homens no mundo presente, em O Destino do homem e do mundo, Vozes, Petrópolis 2002(10ª edição)pp. 137- 156; Id. São José, a personificação do Pai, Vozes, Petrópolis 2012.

2) Veja Família: os desafios de uma instituição em crise, em Correio Riograndense de 29 de outubro de 2003, p.11. Diz ainda Fetter: ”Existem famílias idiossincráticas que, antigamente, seriam consideradasa absurdas: uma família formada por duas lésbicas, uma tem um filho de um rapaz, outra tem o filho de outro, e elas formam uma família muito organizada – uma funciona com o papel fálico e outra, mais como mãe….um grupo de irmãos pode constituir uma família, desde que um deles assuma o papel de pai, outro de mãe, enfim, que estejam presentes os três subsistemas básicos que normalmente formam uma família: o conjugal, o filial e o fraternal. Onde existem os papéis para esses subsistemas, posso afirmar que há uma família” op.cit. p. 11. Para quem se interessar pela Universidade da Família veja o site na internet:http://www.unifam.com.br e o e-mail: mafetter@terra.com.br

3) Houdijk, R., Formas de coabitação e procriação fora do matrimônio, em A família, revista internacional Concilium nº 260 (1995) pp. 30-38 aqui p.36.

4) Veja o Catecismo da Igreja Católica, Vozes, Petrópolis 1993 que nos números 1655-1658 e 2201-2233 sistematiza a posição oficial da Igreja.

5) Familiaris Consortio, nº 15.

6) Ibid. nº18

7) Cf. Documento de Puebla dos bispos latinoamericanos, 1979, nº 582.

8)  Idem nº 2205

9) Lumen Gentium do Vaticano II nº 11; veja também Catecismo op.cit. nn.1665-1666 e 2204.


Leonardo Boff, teólogo e por mais de 20 anos professor de teologia sistemática e ecumênica no Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis, posteriormente professor de ética na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em outras universidades no estrangeiro.     
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