Por Lidiane Ramos Leal.
Do rio, que tudo arrasta, se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
(Bertold Brecht)
No Brasil, aparentemente, o problema da violência social, segundo ideia construída para o senso comum, é em grande parte atribuída à atuação de jovens e adolescentes, obviamente que com um perfil previamente traçado, ficando ainda, particularmente, a falsa impressão de que os adolescentes atuam de forma bem presentes nessas atividades, induzindo a sociedade a acreditar, que a atuação deles é predominante.
Saindo desse entendimento do senso comum, ou construído para a formação do senso comum, não há como negar, evidentemente, que nos últimos anos a participação de jovens e adolescentes em atividades infracionais, propositalmente, tenha se tornado mais notável. Assim sendo, é importante ter presente que qualquer discussão que envolva a questão da violência e sua relação com a adolescência, não deve considerar precipitadamente a falsa ideia de que esta (a violência) tem como causador principal o adolescente.
Essa reflexão é muito importante, justamente porque a questão da redução da idade penal está cada vez mais presente em nosso cotidiano. E claro, analisando de uma perspectiva que ultrapasse a lógica superficial, entendemos que a conexão entre prisão enquanto meio para combate a criminalidade deve ser reavaliada. Uma vez que, os adolescentes após 16 anos de idade que cometerem ato infracional estariam sujeitos ao ineficaz sistema carcerário brasileiro, ao passo que anularia os serviços de medida socioeducativas.
Ideias acerca da redução da idade penal no Brasil, de forma mais explícita e oficial remontam ao ano de 1999, a partir do qual, não tem faltado no Congresso Nacional Brasileiro, quem defendesse Propostas de Emenda à Constituição (PECs) cuja preocupação tem sido abordar e discutir a questão da idade penal.
Essa luta, quase insistente, por redução dos direitos sociais conquistados e neste caso, principalmente, a responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei, também vem sendo instigada pela mídia monopólica, com seus representantes defendendo ferrenhamente a criminalização dos adolescentes.
Desde o Congresso Nacional, passando pela mídia monopólica e consequentemente chegando a sociedade, colocam-se a debater acerca da necessidade que foi criada em torno da redução da idade penal. No entanto, nos cabe observar a fundo o que se apresenta para além da ótica dos infinitos argumentos respaldados pela falsa ideia de justiça social. Considerando que a discussão plasma os interesses da sociedade capitalista, é possível compreender que tal fato abrange a criminalização histórica da pobreza, a qual é intrínseca e imprescindível para manutenção do sistema vigente.Em face de crimes amplamente e propositalmente divulgados pela mídia monopólica, é compreensível que a sociedade discuta as suas compreensões sobre o ocorrido, na ânsia de encontrar soluções para o bem-estar social, ainda que, normalmente nesses espaços, não se analise tecnicamente e densamente as situações debatidas, percorrendo em direção à opinião alastrada pela referida mídia. Dessa maneira, o que predomina nessas discussões é o sentimento de justiça (muitas vezes enganoso e romântico) instigada pela mídia em questão e conservada pela sociedade.
A medida que a mídia monopólica estimula as expectativas concernentes a uma justiça mais rigorosa, e referindo-se, necessariamente, a um direito mais repressivo, ela passa a falsa ideia para à sociedade que os adolescentes não estão sujeitos a qualquer sanção, ignorando as previsões acerca do ato infracional, dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal atitude deixa sem propósito as particularidades da discussão sobre os direitos desses adolescentes e jovens que cometem o ato infracional.
Cabe questionar se o Estado (e nestes casos, especificamente, o Congresso Nacional) está realmente preocupado com as reais causas da violência e, consequentemente, em encontrar soluções para elas, ou preocupa-se apenas em dar respostas paliativas, isoladas e provavelmente demagógicas à sociedade. O que parece ser o caso, na maioria das vezes, haja vista, a discussão tomar maior dimensão, normalmente, em ocasiões em que ocorrem determinadas tragédias, como foi à situação do acontecimento relacionado ao menino João Hélio Fernandes Vieites *, ocorrido no Rio de Janeiro em fevereiro de 2007. Políticos oportunistas podem também aproveitar-se dessas ocasiões de fragilidade emocional da sociedade para fazer virar lei suas convicções, com viés ideológico, muitas vezes excludente e preconceituoso e ainda, com isso, contabilizar politicamente.
Outro aspecto, e em torno do qual, provavelmente, possa estar uma das saídas viáveis e ao que parece mais racional e eficaz para o problema, é a discussão sobre a incapacidade ou a pouca vontade por parte do Estado em enfrentar os desafios de viabilizar a proteção integral às crianças e adolescentes, cujos fundamentos são apresentados no próprio texto constitucional em documentos e tratados internacionais e ainda no ECA.
Conforme a própria Constituição exige, os direitos da criança e do adolescente devem ser garantidos de maneira integral e articulada, através da operacionalização de políticas de natureza universal, protetiva e socioeducativa. É urgente garantir o tempo social dessa faixa etária, com educação de qualidade (o que implica garantir direitos para além do mero acesso), ações que assegurem ainda as capacidades emocionais necessárias, com vistas a permitir a construção de papéis sociais que constituirão a sociedade.
A ideia de associar o ECA à impunidade está intimamente relacionada à insuficiência de quem trata do assunto sem ter o conhecimento necessário acerca da matéria. O ECA não propõe impunidade, para além dos direitos, ele trata também sobre o atendimento ao adolescente que comete ato infracional, por intercessão de medidas socioeducativas. O referido estatuto apresenta duas modalidades de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, quais sejam: medidas em meio aberto e ainda as medidas privativas de liberdade, esta última deve ser reservada às situações de reconhecida necessidade, já que a institucionalização causa prejuízos incontáveis ao desenvolvimento de qualquer pessoa.
Em janeiro de 2012, através da lei º 12.594 foi instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), o qual regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratique ato infracional. O SINASE já estava previsto em documento elaborado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), porém tais orientações nem sempre eram seguidas, gerando insegurança jurídica na sua execução.
Serviços de proteção social são destinados a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, em meio aberto e determinadas judicialmente, quais sejam: Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC), ambos tem como objetivo a oferta de atenção socioassistencial e acompanhamento a adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Esses serviços devem contribuir para o acesso a direitos e para a resignificação de anseios na vida pessoal e social dos adolescentes e jovens. Os direitos e obrigações dessas pessoas devem ser assegurados de acordo com as legislações específicas para o cumprimento da medida. Nessa perspectiva, os municípios devem ter seus serviços organizados, de forma a ofertar com boa qualidade, a fim de tornar realmente efetivo os objetivos legais para atendimentos desses adolescentes e jovens.
O serviço de proteção a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa atende adolescentes e jovens, em LA e PSC, com idades de 12 a 21 anos, aplicada pelo juiz da infância e da juventude. O serviço é ofertado obrigatoriamente no Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS). Ora, é apropriado que a sociedade busque atender os adolescentes em conflito com a lei pela perspectiva socioassistencial. No entanto, o que devemos questionar é: Estes serviços estão sendo oferecidos nos municípios? Como e por quem estão sendo executados?
Não temos como propósito, absolutamente, a tentativa de justificar e ou não compreender como uma violência os atos infracionais cometidos pelos adolescentes e jovens. O que exige atenção, portanto, é a compreensão do comportamento desses adolescentes e jovens que tem suas vidas ceifadas pelos atos infracionais. Tal análise nos deve distanciar de julgamentos infundados e motivados pelo desejo irresponsável de um falsa ordem que acaba por deter os direitos de uma parcela da sociedade.
Analisando o ato infracional como uma expressão da questão social, compreende-se que a violência não terá, de maneira alguma, sua solução na culpabilização irresponsável, nem tão pouco na punição, mas sim por intermédio da atuação insistente nas instâncias sociais, políticas e econômicas que a produzem. Isso implica mencionar que a causa mais latente da violência é um reflexo da imensa desigualdade social que faz com que muitas pessoas sejam submetidas a péssimas condições de vida. Reduzir a idade penal é tratar os efeitos de uma sociedade que historicamente negou os anseios e necessidades da classe trabalhadora, afastando-se ainda mais da causa dessa violência.
Na perspectiva da redução da idade penal, o Estado se acomoda significativamente nas suas atribuições, ao passo que a própria sociedade, manipulada pela lógica burguesa, o isenta de suas responsabilidades. O que nos cabe, como um caminho a ser seguido, é o reforço das políticas públicas, com vistas a atender a demanda socialmente vulnerável, de modo que a violência não seja uma necessidade social. É ilusório entender a mera redução da idade penal como uma panacéia, tendo como direção que os presídios para adultos, além de superlotados, não apresentam, em sua quase totalidade, suporte para recuperar socialmente uma pessoa.
Construir uma sociedade radicalmente comprometida com os valores democráticos e com a construção da cidadania, que sejam compreendidos para além dos insuficientes parâmetros capitalistas, exige uma nova organização das relações sociais. De modo que, requer a viabilização dos direitos já conquistados, através da luta de classes, pela classe trabalhadora, com o propósito de continuar trilhando rumo à socialização da economia, da política e da cultura, ao encontro da emancipação humana.
* Na ocasião, havia um adolescente envolvido com o crime, Ezequiel Toledo de Lima, na época com 16 anos. Condenado, ele cumpriu a pena máxima de três anos, aplicada como medida socioeducativa. Após cumprir pena dentro do regime de semiliberdade, foi liberado em 2011. Outras quatro pessoas foram condenadas pela morte de João Hélio, com penas que variam de 39 a 45 anos de prisão.
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