Fonte: correiodobrasil.com.br
Se o governo considera estratégico ter um algum controle sobre o comportamento das “livres forças de mercado” no ramo bancário, já passou da hora de reverter as formas de ação do BB e da CEF: taxas de juros menores, atendimento com a premissa da função pública e não da receita a qualquer custo, redução dos níveis de “spread” praticados, entre outras medidas.
Apesar de muita gente ter ficado mais otimista com a decisão do COPOM em baixar a taxa de juros em sua última reunião, os efeitos sobre aeconomia real ainda não foram expressivos. Em 31 de agosto, a SELIC foi reduzida de 12,5% para 12,0%, revertendo uma tendência de altas da taxa que vinha se produzindo desde meados de 2009.
No entanto, a diminuição desse indicador que deveria servir como referencial para as taxas praticadas pelas instituições financeiras foi muito pouco relevante para os fins a que se propõe. O Brasil continua a oferecer os maiores índices de rentabilidade financeira do mundo, graças a esse patamar estratosférico da taxa oficial do governo. E com isso o custo do dinheiro aqui dentro é excessivamente elevado. Parcela significativa dos analistas não comprometidos com os interesses do sistema financeiro concorda em que a taxa deva ser reduzida para níveis próximos a 6% ao ano, o que ainda assim a colocaria bem acima dos valores praticados nos Estados Unidos, Europa e Japão, por exemplo. Esse, inclusive, é um dos principais argumentos há tempos levantado por setores da sociedade civil para que o Banco Central passe a levar em conta também a opinião de outros economistas em sua pesquisa mensal, como professores, pesquisadores, assessores de entidades sindicais, etc.
Até hoje, a tristemente famosa pesquisa “Focus” recolhe unicamente as opiniões das instituições financeiras, justamente as maiores interessadas na manutenção dos juros nas estrelas. O resultado desse jogo de cartas marcadas, a gente tem sentido na pele ao longo dos anos. Ou seja, a supremacia absoluta das finanças sobre o Brasil real.
Mas é importante lembrar aqui que não basta apenas reduzir a SELIC. Esse é, sem sombra de dúvida, o primeiro passo para um cenário de mudança, que privilegie a produção, a renda, o emprego. É o que se convencionou chamar de “condição necessária, mas não suficiente”. A redução de sua taxa oficial é um sinal para o conjunto do sistema financeiro e para a sociedade de que o governo pretende fazer com que a economia opere com taxas de juros mais baixas. Existe ainda um efeito secundário importante, pois isso reduz as despesas orçamentárias federais com o pagamento de juros e encargos da dívida pública. Porém, o mais importante é seu efeito esperado sobre a recuperação do investimento e de estímulo à atividade produtiva. E para isso é fundamental que os chamados agentes econômicos (empresas, famílias e indivíduos) sintam na ponta do sistema que as taxas de juros para os empréstimos também tenham sido reduzidas. E isso não tem ocorrido.
Infelizmente, nesse quesito também somos campeões mundiais. A sociedade brasileira encontra-se, digamos assim, em um estado quase de “dependência sócio-químico-cultural” de taxas elevadas de juros. A convivência durante décadas com esse nível de rentabilidade da atividade financeira faz com que a mesma seja vista como um fenômeno “normal”. E para romper com essa lógica perversa da financeirização, é essencial que o Estado intervenha de forma enérgica e ativa. Recursos e instituições o País possui em condições de cumprir a tarefa. O que parece faltar é a vontade política de reverter a tendência histórica de favorecer o parasitismo financeiro em detrimento da atividade produtiva, geradora de bens e serviços.
E aí os números continuam assustadores. A dimensão do setor bancário e financeiro é impressionante. As estatísticas que se seguem são oficiais, todas constantes da página do Banco Central [1] na internet. Na listagem dos maiores bancos operando no Brasil, há 3 bancos públicos entre os 5 maiores. Os ativos totais dos bancos atingiram, de acordo com os balanços do primeiro semestre desse ano, o valor de R$ 4,8 trilhões. Isso representa uma cifra superior ao nosso PIB, que fechou 2010 com R$ 3,8 tri. Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF) e BNDES apresentam ativos cujo valor equivale a 57% dos ativos dos 5 primeiros e a 38% do total do sistema. Assim, fica evidente que possuem um poder de fogo e de pressão nada desprezível sobre o modo de funcionamento dos demais – a chamada “concorrência”.
Caso os dados acima de patrimônio não sejam considerados tão relevantes, vejamos o que ocorre com a lucratividade do sistema financeiro. A cada semestre nossos bancos anunciam recordes em cima de recordes. Ao longo de 2010, o sistema registrou um lucro líquido consolidado de R$ 67 bilhões. Dado o nível de concentração dos conglomerados, apenas os 5 maiores lucraram o equivalente a R$ 53 bi. E a trinca dos públicos alcançou R$ 26 bi. Ou seja, apenas eles obtiveram 38% do lucro líquido de todo o sistema durante o ano passado. Vale a pena observar que o conceito de “lucro líquido” representa os ganhos depois de todas as possibilidades do chamado “planejamento tributário” diminuir contabilmente os ganhos realmente ocorridos. Se considerarmos o lucro bruto total, antes do pagamento de tributos e distribuição de dividendos, o conjunto do sistema bancário apresentou um resultado de R$ 89 bi em 2010.
Ao que tudo indica, a tendência para o ano atual é de manutenção da mesma performance dos exercícios anteriores. Os balanços de junho passado demonstram que os 3 bancos públicos atingiram um lucro líquido de R$ 14 bi, valor que continua representando os mesmo 38% do lucro líquido do conjunto do sistema. Não faz sentido algum os bancos do governo federal pautarem sua ação no mercado financeiro por essa ganância toda. Para que tanto lucro? O mais lamentável é que esses recursos acabam indo para formar o superávit primário da União. Ou seja, retornam ao mercado financeiro sob a forma de pagamento de juros da dívida pública da União.
Ora, a pergunta que não quer calar é óbvia: por que ao longo dos últimos 9 anos, desde a posse de Lula em 2003, os governos que teriam vindo para “mudar” não ousaram ter um mínimo de ação para alterar tal quadro? Afinal, felizmente, não se trata de um setor cujas empresas estatais federais tenham sido privatizadas anteriormente, como ocorreu em tantos outros. Elas sobreviveram preservando sua natureza pública e exercem peso importante no setor. Aqui o Estado e o governo federal têm instrumentos efetivos para atuar com peso e reverter tendências que sejam prejudiciais ao conjunto da sociedade.
Porém, ao contrário do que se poderia imaginar, a orientação conferida aos administradores do BB e da CEF [2] não caminhou no sentido de eliminar os aspectos negativos da financeirização radicalizada. As sucessivas direções das duas instituições, subordinadas ao Ministério da Fazenda, enfatizaram ainda mais a tendência anterior ao chamado processo de “bradesquização” – ou seja, de atuar no mercado bancário e financeiro seguindo as regras ditadas pelos bancos privados, cujo paradigma empresarial sempre foi representado pelo Bradesco e seus pares.
Com isso, pouco a pouco, essas instituições históricas acabam por perder o diferencial de “banco público” em sua ação no segmento bancário e passam a apostar no crescimento de seus resultados baseados na lógica de acumulação de capital a qualquer preço, típica dos agentes financeiros privados. As taxas de juros são semelhantemente elevadas, as onipresentes taxas por serviços prestados também e o mesmo ocorre com o escandoloso fenômeno do “spread” bancário. Na ponta, o cliente termina por não sentir muito a diferença entre ser correntista de um banco público ou de um privado. A sensação de exploração e impotência é a mesma.
Agora, se o governo considera estratégico ter um algum tipo de controle sobre a selvageria do comportamento das “livres forças de mercado” no ramo bancário e financeiro, já passou da hora de reverter as formas de ação do BB e da CEF. Caso sejam chamados a oferecer uma nova forma de relacionamento com a sociedade e a economia, todos sairão satisfeitos. Taxas de juros mais reduzidas, atendimento com as premissas da função pública e não da obtenção de receita a qualquer custo, redução dos níveis absurdos de “spread” praticados, entre outros. Além disso, dentre os vários aspectos positivos dessa mudança, obrigaria os bancos privados a também mudarem sua postura. Caso contrário, correrão o risco de perder espaço de negócios e clientela. Afinal, não é essa mesmo a tal “regra do mercado” que seus porta-vozes tanto apregoam?
[2] O BNDES é um caso especial,, pois não se trata de um banco comercial normal para correntistas. Assim, ele tende a operar apenas com empresas e com linhas de crédito do governo federal a juros subsidiados.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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