Em artigo na Folha de S.Paulo de domingo (13/11), Mauro Paulino, diretor geral do Datafolha, e Alessandro Janoni, diretor de pesquisa, fazem, sob o título “Conflito na universidade é sintoma de crise democrática; distanciamento dos canais tradicionais de participação política é preocupante”, um dos alertas mais relevantes publicados recentemente na imprensa brasileira.
O ponto crítico está no segundo parágrafo:
“A exemplo do que vem ocorrendo em outros países, as instituições tradicionais de representação do modelo hegemônico de democracia se distanciam da população, em especial dos jovens.”
O remate do texto explicita o foco da preocupação:
“Se uma crise equivalente à europeia aqui se instalasse, como a polícia reagiria a eventuais manifestações dos jovens da periferia? Especialmente sem a mesma atenção da mídia, tão criticada pelos uspianos?”
O artigo faz parte de um material que ganhou uma das manchetes mais capciosas que a Folha de S.Paulo publicou nos últimos tempos: “58% dos alunos da USP apoiam a PM no campus”. Manchete tardiamente esvaziada por editorial da edição do dia seguinte, como se verá a seguir.
Estado de insegurança
Como se sabe, as instituições do país não foram testadas nos últimos anos pela irrupção de conflitos sociais de grandes proporções. Nada do que houve no Brasil recentemente se pareceu nem de longe com movimentos em países árabes, na Espanha, na Itália, nos Estados Unidos, em Londres, ou, para recuar um pouco no tempo, com a queima de automóveis em cidades da França e de outros países europeus.
O evento que mais recentemente “testou o sistema”, de modo muito peculiar, fora do campo explícito da política, foram os ataques do PCC, Primeiro Comando da Capital, que paralisaram a Grande São Paulo em maio de 2006 e tiveram como resposta das forças policiais o entrincheiramento em quartéis e delegacias e, mais adiante, uma sequência de execuções de supostos criminosos. Primeiro por bandidos, depois pela polícia – em oito dias 564 pessoas foram mortas e 111, feridas.
Nos dois momentos, a democracia saiu bem arranhada. As forças de segurança pública não tiveram capacidade de defender a população dos ataques, nem mesmo de se defender. A maior cidade do país parou.
Negociada em presídio de segurança máxima uma trégua entre o governo paulista e o comando do PCC, forças policiais ignoraram a lei e promoveram execuções. Só a PM foi responsável por 122 mortes. A ilegalidade foi reconhecida pelo Tribunal de Justiça paulista ao condenar o estado de São Paulo a pagar indenização à mãe de um dos mortos, José da Silva Santos (UOL Notícias, 3/11/2011).
Violência contida ou incontida
É fácil obter consenso social para contra-atacar criminosos que desafiam a sociedade. Mais difícil seria obter apoio para reprimir manifestações de rua pacíficas, mas não autorizadas, cujos organizadores fossem capazes de impedir a ação de provocadores. Isso não foi testado na democracia brasileira pós-eleição de Lula.
No episódio da desocupação do prédio da Reitoria da USP (8/11/2011), a tropa de choque da PM foi corretamente orientada a se apresentar em superioridade avassaladora. O desfecho não contabilizou mortos ou feridos, embora o ataque tenha sido uma violência sob controle com que o governo do estado respondeu à violência sob controle dos invasores.
Um balanço histórico das intervenções de forças policiais em manifestações públicas, abertas ou fechadas, mostra que na maioria dos casos uma indiscutível superioridade policial produz resultados menos violentos do que quando uma parte dos manifestantes imagina ser possível levar a melhor.
Há uma verdade simétrica: quando se impõem a unidade e a amplitude do movimento, os linhas-duras e os que cultivam a violência não conseguem prevalecer. Bons exemplos são a Passeata dos Cem Mil, em 1968, e todo o movimento das Diretas-Já, em 1984.
Insista-se: na maioria dos casos.
Houve episódios em que prevaleceu a selvageria repressiva: invasão da Companhia Siderúrgica Nacional por tropa do Exército, em 1988 – à comoção resultante se costuma atribuir o diferencial da vitória de Luiza Erundina, do PT, na eleição para a prefeitura de São Paulo, contra Paulo Maluf –; invasão do presídio do Carandiru em 1992, pela tropa de choque da PM, quando foram contabilizadas oficialmente 111 execuções de presos; ação da PM do Pará em Eldorado dos Carajás, em 1996, quando foram mortos 19 manifestantes sem-terra.
FHC e petroleiros
Em compensação, a maneira como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enfrentou uma greve de petroleiros em maio de 1995, cinco meses depois de tomar posse, se deu a alguns a certeza de que prevalecem “formas relacionais excludentes do Estado com as classes trabalhadoras no Brasil” (resumo da tese de doutorado “A greve do fim do mundo....”, de Frederico Lisboa Romão), impediu que fosse bloqueado o projeto de flexibilização do monopólio estatal do petróleo, defendido durante sua campanha eleitoral.
FHC mandou o Exército cercar refinarias e apoiou a Petrobras em demissões por justa causa. Não houve mortos nem feridos, e o governo não ficou politicamente aleijado.
A propósito, lê-se com grande interesse a coluna do então ombudsman da Folha, Marcelo Leite, sobre os vícios da cobertura jornalística do episódio: “Guerra de informação”, 4/6/1995.
Resumo da opereta: se a repressão é incontornável, é melhor que a superioridade policial dissuada os potenciais oponentes de opor uma resistência violenta. Em outro registro, viu-se isso novamente na invasão da Rocinha, no domingo (13/11).
A manipulação
O que há de criticável na manchete da Folha (“58% dos alunos da USP apoiam a PM no campus”)?
Deixem-se de lado, aqui, restrições à metodologia da pesquisa. Assuma-se, portanto, que a consulta à amostra reflete com razoável fidelidade o pensamento dominante no universo pesquisado (só alunos; por que não professores e funcionários?).
É que Folha usou o resultado como instrumento de convencimento político. Na sexta-feira (4/11) publicara editorial em que se lia: “Presença de policiais militares no campus da USP é necessária e não ameaça em nada a liberdade de ensino e de pesquisa”. É uma manobra criticável usar a pesquisa para reforçar a opinião do jornal.
Reitor é que decidiu
Essas coisas não se decidem por pesquisa de opinião, nem mesmo por consulta direta. Quem decidiu assinar um convênio com a PM foi o reitor. Desse ponto de vista, é como se o jornal estivesse dando uma ajuda a João Grandino Rodas. A iniciativa do reitor seria convalidada a posteriori pela pesquisa.
A maioria das pesquisas do Datafolha realizadas nos últimos 20 anos a respeito da instituição da pena de morte no país mostraram resultados favoráveis a essa “punição”. As outras indicaram empate técnico (sempre com maioria a favor).
As oscilações costumam aparecer em momentos de indignação do povo, como após o assassinato do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, em 7 de fevereiro de 2007. Um mês depois, o Datafolha encontrou 55% de entrevistados favoráveis à pena de morte (40% contra), maior índice desde fevereiro de 1993 (55% ante 38%): em dezembro de 1992, a atriz Daniela Perez fora assassinada pelo ator Guilherme de Pádua.
A Justiça Eleitoral não poderia, por exemplo, à luz do entendimento vigente, realizar um plebiscito sobre o tema. A exclusão da pena de morte é uma das chamadas cláusulas pétreas da Constituição, estabelecidas no art. 60, § 4º. Aí se proíbe a alteração, por emenda, dos direitos e garantias individuais. No art. 5º, que define tais direitos e garantias, se estabelece (inciso XLVII) que “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.”
A salvo da pena de morte oficial
O assunto admite controvérsias entre juristas e comentadores. Alguns argumentam que a geração atual não pode impor sua maneira hegemônica de ver a gerações vindouras. A palavra “cruéis” admite interpretações distintas, embora o assunto tenha sido objeto de convenções da ONU e da OEA “contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes”.
Se a proibição de penas cruéis estivesse sendo acatada, a Justiça deveria fechar a maioria dos presídios brasileiros. E nem poderia aplicar o chamado Regimento Disciplinar Diferenciado (RDD), que dá ao apenado duas horas diárias de banho de sol, isolamento em solitária, proibição de visitas e de acesso a noticiários durante certos períodos. Pode vigorar por 360 dias, prorrogáveis até prazo que não exceda um sexto da pena. Se a pena for, por hipótese, de 30 anos, o condenado pode passar cinco anos no RDD.
Controvertida ou não, ninguém conseguiu questionar com um mínimo de sucesso a irrevocabilidade da proibição da pena de morte, algo muito definido, sem margem a interpretações (ou arrependimentos...). Na prática, o que a polícia, as milícias e traficantes fazem é decretar e executar por conta própria a pena de morte (ver “Brasil executa sem julgar”).
Brasil decidirá futuro do Pará
Mesmo que o plebiscito sobre a divisão do Pará, que se realizará em 11 de dezembro, tenha resultado favorável aos que defendem a criação dos estados de Carajás e Tapajós, o assunto não estará resolvido.
Será ouvida depois a Assembleia Legislativa do estado. Em seguida, o Congresso Nacional deverá deliberar. Caso deputados e senadores aprovem a lei, ela precisará ser sancionada pela presidente da República. E, em última instância, poderá ser derrubada no Supremo Tribunal Federal.
Faz sentido: dividir o Pará teria custos consideráveis, a serem pagos com recursos públicos, e mexeria bastante com a representação política no Congresso, acentuando a desigualdade já existente entre eleitores de estados populosos e de estados com pequena população (ver, a propósito dessa consulta popular, “A silenciosa cumplicidade” e “Plebiscito já – para todos”).
Foi o caso da criação do estado de Tocantins. O território antigo do estado de Goiás, com população total de 9,9 milhões de habitantes, tem nove senadores e 33 deputados federais (bancadas de Goiás, DF e Tocantins; na média, 1/300 habitantes). Minas Gerais, com 19,6 milhões de habitantes, tem três senadores e 53 deputados federais (1/370 habitantes). São Paulo, 41,2 milhões de habitantes, é representado por 70 deputados federais (1/588 habitantes).
Manobra midiática
A chamada da edição dominical da Folha dizia que “a presença da polícia é amplamente aprovada em exatas (77%) e biológicas (76%), mas não em humanas (40%)”. Esse recorte da opinião segundo áreas do conhecimento era reforçado na abertura do caderno “Cotidiano”. É uma forma de insinuar que “o pessoal de humanas”, mais “descolado”, rebarba a presença ostensiva dos homens da lei – talvez para poder fumar em paz cigarrinhos de maconha −, enquanto os alunos de exatas e biológicas, com mais juízo e preocupações menos etéreas, apoiam o policiamento.
O “Cotidiano” trazia ainda uma entrevista do reitor da USP, João Grandino Rodas, para quem “partidarização estudantil é ruim”. A declaração levada ao título estava nas últimas linhas da entrevista: “Não é construtivo [sic] para a USP uma política estudantil que gravite em torno de partidos da política nacional ou, pior, que seja financiada e dominada por eles”.
Essa declaração não é construtiva. Estudantes universitários, que podem votar desde os 16 anos de idade e podem fazer serviço militar, devem se abster de fazer política? Por certo, não. Então, que canais o reitor prefere para a política? Canais à margem “de partidos da política nacional”? Por que os partidos não poderiam financiar atividades no meio estudantil, se podem fazê-lo em qualquer outro meio, em boa parte com dinheiro público? O reitor não reconhece na participação dos jovens universitários uma possibilidade de oxigenação dos partidos?
A Folha publicou sem questionar. Se questionasse, talvez a matéria ficasse sem lead, logo sem título, logo sem lugar na edição. Mas o jornal queria dar uma palavra do reitor. Queria muito. Tanto que o convocou outra vez no dia seguinte, segunda-feira (14/11), quando o “Cotidiano” publicou nova entrevista de Grandino Rodas, agora explicitando a manobra: “Só os ‘ideológicos’ serão contra PM no campus, diz reitor da USP”.
A reportagem, em si, é razoável. Registra duas opiniões contrastantes com a do reitor. Renan de Oliveira, diretor do DCE (Diretório Central dos Estudantes), deduz do resultado da pesquisa, a seu ver equilibrado, que há necessidade de debater o tema. O professor Ruy Braga, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), vê o percentual favorável à presença da PM como resultado de uma “campanha da mídia para convencer a comunidade” de que ela é necessária.
A edição − o título baseado na palavra do reitor, mais concretamente, que cabe como uma luva na intenção do jornal ao destacar na véspera o resultado da pesquisa do Datafolha − é que denuncia o facciosismo da Folha.
Piruetas mentais
Surpreendente, como sintoma de desorientação do jornal, é que novo editorial sobre o assunto, na mesma edição, coloque em questão o comportamento da polícia na USP. Eis a síntese: “PM tem problemas mais graves a resolver do que revistar jovens, universitários ou não, à procura de pequenas quantidades de maconha”.
Como uma espécie de antídoto contra a manipulação da pesquisa do Datafolha, feita na véspera, o editorial adverte em linguagem alusiva, depois de dar os resultados (58% a favor e 36% contra):
“Vale notar, entretanto, que em alguns setores da comunidade universitária as inquietações suscitadas pela atuação cotidiana da PM extravasam o limitado e incandescente horizonte ideológico dos invasores da reitoria.”
O que se pode dizer diante de tanto malabarismo mental?
Que os “ajustes” da edição de segunda-feira não consertam os estragos feitos pela manchete da edição de domingo. E que concepções discrepantes dos editores da Folha parecem disputar espaço nas páginas do jornal.
Se um episódio de alcance limitado, como a invasão da reitoria da USP e sua desocupação sem vítimas, produz tanta confusão mental, imagine-se com que estado de espírito o jornal enfrentaria um caso grave de repressão violenta.
Mais uma razão para esperar que não ocorra.
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