quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O dever da liberdade

Fonte: www.observatoriodaimprensa.com.br


Por Eugênio Bucci em 25/08/2011 na edição 656


Este texto se utiliza de trechos de dois artigos que publiquei anteriormente. O primeiro, chamado “O Desejo de Censura”, saiu no jornal O Estado de S. Paulo em 31 de julho de 2011, no caderno especial “Sob Censura”, página H7, H8 e H9. O segundo é um ensaio (“A imprensa brasileira”) publicado no livroAgenda Brasileira, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e André Botelho, pela Editora Companhia das Letras, 2011, pp. 266-277. A leitura, realizada durante a VI Conferência Legislativa sobre Liberdade de Expressão, na Câmara dos Deputados, em Brasília, em 23 de agosto de 2011, não seguiu rigorosamente o texto. Pequenos comentários foram introduzidos de improviso, e outras passagens foram abreviadas.


Hoje, em vários países, há discussões sobre a interferência do Poder Judiciário ou de alguma outra forma de controle estatal sobre o livre fluxo de idéias, opiniões e informações jornalísticas. Na Inglaterra e, de modo mais amplo, no Reino Unido, estão em pauta as chamadas “superinjunctions”, medidas preventivas que impedem um jornal de tocar num assunto determinado e também o proíbem de mencionar o impedimento.
Em nome da proteção à privacidade do indivíduo, o jornalismo vem sofrendo restrições, ou tentativas de restrições, quase sempre abusivas. Nos Estados Unidos, tem prevalecido o entendimento de que, em casos de segurança nacional, os jornalistas não podem invocar o sigilo da fonte. Para os que cultivam a idéia de que a liberdade de imprensa tem lugar de pedra fundamental na democracia, há motivos de preocupação.
No Brasil, especialmente. A mentalidade autoritária, entre nós, não é apenas um fator conjuntural que distorce o debate público. Ela tem raízes mais fundas. Sem medo de errar, podemos dizer que ela está na estrutura da nossa instituição de Estado. Faz parte do DNA da nossa cultura política. Retarda, quando não inviabiliza, a consolidação histórica da ordem democrática. Trata-se de um anacronismo persistente que nos prende ao atraso. Essa mentalidade preserva o patrimonialismo e perpetua a opacidade na gestão pública, o mandonismo, o clientelismo e as formas mais ancestrais de corrupção. É ela quem fustiga os jornais e dissemina a ilusão de que jornalistas precisam de uma autoridade que lhes sirva de pajem, de feitor, de vigia. Preventivamente.
Pedido negado
Em nossa cultura política, o conceito radical de liberdade ainda não foi admitido. Lembremos que essa palavra, liberdade, designa aquilo que, em nossas vidas, reside além do Estado e do poder político. A liberdade não se circunscreve ao campo do que se acha autorizado pela lei, ou assegurado por força de lei, mas diz respeito, principalmente, ao espaço além do que pode ser tocado pelo Estado, por seus tentáculos físicos ou por seus ordenamentos simbólicos.
Eu diria, em termos concisos, que a liberdade gera fenômenos dos quais a lei não sabe o nome. É bom que assim seja. É necessário. Pretender instalar uma instância estatal no caminho que vai do exercício silencioso do pensamento à expressão pública da opinião é uma espécie de crime fundamental, que faria da autoridade um filtro da imaginação humana. Mas a nossa cultura autoritária acredita que esse filtro nos traria vantagens.
Sabemos que nossa História é pontuada de inversões notáveis. Com Tordesilhas, em 1494, tivemos uma delas: no caso brasileiro, a cartografia precedeu a realidade física; o mapa foi desenhado antes que a terra fosse vista. No campo religioso, a contrarreforma veio a nós bem antes da reforma, o que também nos legou consequências. Mas a inversão que mais nos interessa, hoje, aqui, é aquela que o professor Luís Milanesi, num pequeno livro de bolso, O Que é Biblioteca (Editora Brasiliense, 1983), sintetizou muito bem: “A imprensa no Brasil nasceu depois da censura.” Nada mais verdadeiro.
D. João, em 1808, trouxe para o Brasil uma bagagem do tamanho de Portugal. Entre malas e baús, mandou vir para cá uma tipografia completa, a sua corte e o próprio aparelho de Estado. Claro, mandou vir também o expediente da censura, ou melhor, as três censuras que existiam em Lisboa: duas ligadas à Igreja Católica – Santo Ofício e Ordinário – e a terceira pertencente ao poder civil, o Desembargo do Paço. Em setembro de 1808, quando a Gazeta do Rio de Janeiro saiu das oficinas como o primeiro diário gerado em terra brasileira, a engrenagem censória já se encontrava devidamente instalada.
O mensário Correio Braziliense, dirigido pelo brasileiro Hipólito José da Costa (1774-1823), lançado poucos meses antes da Gazeta, em junho de 1808, era redigido e impresso sem nenhuma censura, mas bem longe daqui. Lá em Londres. Sua circulação no Brasil, contudo, logo encontrou barreiras. Em 1809, a Coroa vetou oficialmente a circulação do Correio no Brasil. Não obstante, o jornal circulou por aqui até 1821. A proibição era meio acochambrada. Por baixo do tapete, o mesmo d. João que censurava dava uma força, a seu modo, e financiava Hipólito da Costa na Inglaterra. Com uma mão o governante vetava – com a outra, agradava. Esse fato – que aparece em vários historiadores – realça as ambiguidades luso-brasileiras em matéria de imprensa e de censura. A autoridade pátria imagina poder sustentar e silenciar a imprensa como quem regula a intensidade da chama de uma lamparina. Imagina poder defender a liberdade e a castração de uma vez só. A autoridade se imagina fonte das liberdades dos súditos.
Dentro dessa cultura, o discurso do poeta e publicista inglês John Milton ao Parlamento em Londres, em 1644, jamais foi assimilado. Na Areopagítica, Milton defendeu o princípio de que ninguém deveria ter que pedir autorização oficial para publicar um livro ou qualquer texto. Imaginem os senhores. Ainda outro dia, agora, no ano de 2011, representantes do Ministério Público de Minas Gerais solicitaram que o Ministério da Justiça vetasse a exibição de um filme sérvio em nosso país. O pedido foi sabiamente negado, mas a idéia de que o poder público pode conceder ou negar permissão para que alguém manifeste sua arte ou seu pensamento é, até hoje, amplamente aceita.
Normalidade democrática
Em 1985, quando já era finda a ditadura militar, o governo de José Sarney proibiu o filme Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Godard. Depois disso, a Constituição de 1988 afirmou ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5º, inciso IX), e vedou “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (artigo 220, § 2º). Mesmo assim, a mentalidade censória resiste. Como evidência disso, é obrigatório que façamos referência, aqui, à censura judicial contra O Estado de S. Paulo, que pesa sobre o jornal há exatos dois anos. Dezenas de veículos sofreram com essa modalidade de censura, quase sempre, demandada por políticos ou de parentes de políticos. É uma violência contra o cidadão a serviço dos de cima.
São esses de cima que, se contrariados, vociferam abertamente contra repórteres. Arrancam microfones das mãos de jornalistas. Amaldiçoam a imprensa. Em 2009, com o Estado já sob veto, impedido de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica, que investigava operações do empresário Fernando Sarney, o pai do empresário, José Sarney, presidente do Senado Federal, declarou que “a mídia” se convertera em “inimiga das instituições representativas” (frase que apareceu na primeira página de O Estado de S. Paulodo dia 16 de setembro de 2009). Para ele, o Senado dos atos secretos não poderia ser questionado pelos repórteres.
Poucos meses depois, no final do mesmo ano de 2009, o então presidente do STF, Gilmar Mendes, comparou a injustificada censura prévia contra o Estadão ao episódio da Escola Base, de 1994 (conforme documento ou Estadão de 11 de dezembro de 2009):
“Se tivesse havido naquele caso [o da Escola Base, de 1994] uma intervenção judicial, infelizmente não houve, que tivesse impedido aquele delegado, mancomunado com órgão de imprensa, de divulgar aquele fato, aquela estrutura toda escolar e familiar teria sido preservada. E não foi.”
A comparação não procede. Em 1994, uma pequena escola do bairro da Aclimação, na cidade de São Paulo, foi vítima de um inquérito policial espalhafatoso. Sem checar devidamente as ilações da autoridade policial encarregada das investigações, alguns órgãos de imprensa destruíram a reputação dos donos da instituição. Foi um desastre – e, desde então, o caso da Escola Base virou matéria obrigatória nos cursos de jornalismo. Já o noticiário publicado no Estadão de 2009 sobre a Operação Boi Barrica não invadiu intimidades nem destruiu a honra de ninguém. Não há semelhança alguma entre os dois episódios.
A despeito disso, as palavras de Gilmar Mendes sugerem que, se os magistrados tomassem conta dos repórteres e dos editores, as falhas jornalísticas cessariam. E “a estrutura familiar estaria preservada”!
Pronunciado por um magistrado, esse tipo de argumento é preocupante e, mais ainda, ofende a inteligência dos brasileiros. Durante a ditadura militar, as arbitrariedades praticadas pelas autoridades policiais não eram noticiadas, pois havia censura. Mesmo assim, famílias inteiras não foram preservadas. Não foi por excesso de reportagens, mas por falta de reportagens que a tirania logrou agredir tão gravemente a família brasileira. Ainda bem que hoje temos mais liberdade. Graças à liberdade, a estrutura familiar dos brasileiros está menos desprotegida.
Outro engano recorrente entre as autoridades é esse de achar que o Sigilo de Justiça ou o Sigilo de Estado, que alguns pretendem que seja eterno, deva impor silêncio ao jornalista. Não há sentido nessa presunção autoritária. A imprensa não pode ser condenada a se dobrar a sigilos que não são dela, mas da Justiça. A imprensa é essencial à sociedade justamente porque, não sendo governada pelos poderes do Estado, pode se empenhar, com independência, em descobrir os segredos que interessam ao cidadão. Imprensa só tem utilidade quando quebra segredos que, no seu âmago, escondem indevidamente informações de interesse público. Eis a razão pela qual existe a imprensa. Afinal, o que é uma notícia se não um segredo revelado?
A função de guardar os segredos oficiais é das autoridades encarregadas, não dos repórteres. Estes têm, sim, em nome do interesse público, o dever de tentar desvendá-los, por meios lícitos, e de avaliar a pertinência de publicá-los.
Mas isso também parece ser muito difícil de ser entendido pelo poder no Brasil. Ainda estamos longe de ver a liberdade de imprensa como um dado da normalidade democrática. Ainda parecemos encontrar conforto na premissa de que alguma autoridade estará zelando por nós, tomando conta dos jornalistas.
Pendor pela censura
Liberdade de imprensa, ao contrário do que alegam muitas das autoridades, não significa impunidade. É bem o contrário. A liberdade impõe uma enorme carga de responsabilidade aos jornalistas, que devem responder pelos excessos que praticarem – na Justiça. A liberdade não é um conforto, mas um dever para o jornalista. Quem tem direito à imprensa livre é a sociedade. Quanto ao jornalista, este tem o dever de exercer a sua liberdade e de construir, no exercício da sua profissão, as bases da imprensa livre. Em nome desse dever, que é a mais alta forma de respeito ao direito à informação do cidadão, muitos são os jornalistas que arriscam e mesmo perdem a vida.
Só o que cabe às autoridades é proteger a liberdade de imprensa e a integridade de seus profissionais. Da parte do Estado, o respeito à liberdade de imprensa se traduz numa renúncia: o governante de vocação democrática sabe se recusar a usar seu poder com o objetivo de interferir na mediação do debate público.
No Brasil, a mentalidade autoritária tem apreço pela figura do Estado senhor do monopólio da força. De outro lado, não aprendemos que não há democracia sem que o Estado renuncie a exercer controle prévio sobre fluxo das informações e das idéias na sociedade. E essa idéia é chave.
O Estado só existe quando, a favor dele, os cidadãos renunciam ao uso da força, para lembrar aqui a noção que foi tão bem demonstrada por Weber, numa passagem clássica, em que ele cita o líder bolchevique León Trotsky, para o qual “todo Estado se funda na força”. Pois bem: assim como o Estado só existe quando detém o monopólio da violência, a democracia só existe quando, a favor dos cidadãos, o Estado renuncia à tentação de interferir sobre a formação, a manifestação e o trânsito das opiniões e das informações.
Dessa compreensão, lamentavelmente, estamos longe. Na nossa cultura política, a brutalidade do Estado se manifesta na falta de cerimônia com que as autoridades atacam a imprensa. Essa mentalidade, além do monopólio da força, pretende ter o monopólio da opinião.
Daí esse pendor pela censura, essa inclinação incorrigível de tomar conta dos jornalistas. O tema da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa continua na ordem do dia em nosso país. Houve avanços nessa matéria? Sim, houve. Mas a mentalidade autoritária ainda persiste, manifestando-se a toda hora. Se queremos liberdade, não podemos mais deixá-la tão à vontade.
***
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP e da ESPM

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