quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O coração da crise


O mundo está saindo do buraco ou a crise toma fôlego para mergulhar no porão do abismo? Há números e argumentos para cada gosto. Até geograficamente a dualidade se oferece na contraposição entre uma economia americana menos anêmica e uma Europa que se desmancha sob a ação de solventes financeiros e políticos. George Soros adverte: a lixadeira do arrocho fiscal vai corroer o que sobrou em camadas de recessão e deflação de ativos. No Brasil, respeitados economistas já falam em um ciclo internacional de pelo menos dez anos: 'A Grande Depressão'. 

Como os governos podem reagir ao infortúnio? Decifrar a dominância financeira que gerou a crise e impede a sua superação é o requisito encarado por um grupo de economistas da Unicamp (Ricardo de Medeiros Carneiro; Pedro Rossi; Marcos Vinicius Chiliatto-Leite; Guilherme Santos Mello). Eles se debruçaram sobre o coração do capitalismo nos dias que correm: o mercado de derivativos. Num paper para debate ('A quarta dimensão: os derivativos em um capitalismo com dominância financeira') o grupo radiografa a singularidade teórica dessa roleta e dimensiona o tamanho da encrenca: US$ 600 trilhões, dez vezes o PIB mundial; 35 vezes a massa de ações negociadas em bolsas. Algumas notas baseadas no estudo, cujo texto não inclui os comentários políticos de exclusiva responsabilidade deste blog: 

1. A característica fundamental desse mercado é que ele não se funda na propriedade jurídica dos bens, mas através de uma teia de relações financeiras apropria-se dos direitos sobre o desempenho dos ativos. 

2. Tudo se passa, de certo modo, como se as relações de propriedade lhe fossem indiferentes, desde que resguardadas as condições de desregulação das finanças, com a garantia da livre circulação de capitais.

3. Um traço da natureza parasitária e especulativa dessa etapa é a sua capacidade de inserir-se no processo de acumulação sem a necessidade de um investimento inicial no ambiente físico da economia. Salta-se a trindade da acumulação (D-M-D), mas também se avança um passo além da financeirização originalmente expressa na forma D-D (valorização via jogo de ações, por exemplo).

4. Na medida em que deslocam seu foco da esfera patrimonial para a do rendimento propiciados pelos ativos, os derivativos levam o processo de descolamento da economia real ao ápice. 

5. Nos contratos de derivativos fundem-se o dinheiro e o juro intrínseco a cada etapa da operação capitalista, adicionando-se um ganho de velocidade e mobilidade que atende à busca permanente de proteção face às incertezas inerentes à posse e valorização da riqueza no sistema produtor de mercadorias.

6. A fuga da incerteza está presente em toda a história do capital. Mas somente quando o sistema financeiro se descola dos controles do Estado, graças a uma ordem política que delibera nesse sentido, é que a engrenagem se emancipa.

7. A partir de então um véu de opacidade recobre os verdadeiros protagonistas das gigantescas operações de transferência de riqueza que o mercado de derivativos promove em ambientes assépticos, dentro de ternos finos, escritórios de luxo e telas de cristal líquido high tec. A acumulação do capital fictício ganha autonomia extrema, integrando riscos e mercados, reduzindo tudo a commodities, inclusive moedas nacionais flanqueadas a partir da submissão de governos aos mandamentos da desregulação financeira. 

8. Um jornalismo especializado, rudimentar no conteúdo, de um modo geral, mas prestativo na abordagem, impermeabiliza o conjunto com uma camada de verniz naval de legitimidade e eficiência. Ao mesmo tempo desqualifica-se a crítica heterodoxa. Coube a esse jornalismo distinguir Celso Furtado, o maior economista brasileiro, com a alcunha de jurássico. Fecha-se um círculo de dominação e legitimação de um poder que os economistas da Unicamp denominam como a 'quarta dimensão' das relações capitalistas, sendo as anteriores as relações de subsistência; a extração da mais valia e o dinheiro a juros ou financeirização da riqueza patrimonial (mas ainda vinculado à esfera real da economia)

9. O lucro de cassino das operações com derivativos, ao contrário, deriva exclusivamente de apostas sobre a variação de desempenho de um ativo que não se possui. 

10. Mas os ganhos na roleta condicionam a formação dos preços a vista pelo seu volume descomunal e agressiva capacidade de interligar planetariamente diferentes mercados. 

11. Na evolução do processo capitalista, o cálculo econômico é progressivamente condicionado, por exemplo, pelo exercício de direitos financeiros sobre o resultado de uma empresa. A supremacia dos acionistas, fundos e investidores de um modo geral transmite-se em cadeia para o pátio da fábrica e daí para as relações trabalhista, para os valores sociais e também para o meio ambiente. Cortes de custos; intensificação produtiva; maximização de resultados extrapolam qualquer possibilidade de convívio sustentável entre humanos e entre eles e a natureza. 

12. A dinâmica dos derivativos determina e condiciona o custo e a expansão do crédito; maximiza a especulação com títulos de seguro contra calotes de dívidas soberanas; influencia a formação da taxa de câmbio pelo canal especulativo do carry trade (lucro com diferenciais de juros entre duas economias distintas); distorce as cotações de commodities, exacerbando tendências e volatilidade. 

13. Tudo se torna perigosamente pró-cíclico, ao mesmo tempo em que as defesas do Estado recuam e a capacidade política e operacional de reação às crises definha. 

14. O mercado de derivativos se sobrepõe aos demais na medida em que consegue estabelecer uma esfera de poder e riqueza relativamente desconectada dos fundamentos e, não raro a contrapelo da economia real. Condiciona, influencia e distorce sem o ônus de pisar no chão firme da fábrica ou assumir diretamente a aspereza da luta de classes. 

Sua hora da verdade fica por conta das crises. A atual põe em xeque a desregulação das finanças, a vulnerabilidade dos Estados, o crédito irresponsável e o endividamento temerário. É, portanto, uma crise dos próprios fundamentos dos mercados derivativos que todavia subsistem como força política com músculos para disputar o passo seguinte da história. A ver.
Postado por Saul Leblon às 18:03

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