sábado, 3 de setembro de 2011

WikiLeaks, Karl Marx e tu


Fonte: www.diarioliberdade.org

Sexta, 02 Setembro 2011 02:00
010911_wikimarxO Comuneiro - [Alistair Davidson] Apesar da extensa cobertura da mediática sobre Wikileaks e Julian Assange, tem havido pouca discussão sobre o fato de que Assange é apenas um líder dentro de um grande e complexo movimento social. As melhores análises acharam interessante que o Partido Pirata Sueco esteja ajudando Wikileaks; alguns notam as ligações ao Chaos Computer Club alemão. Mas apenas "geeks" e "hackers" (1) (trabalhadores tecnológicos) estão cientes de que todas essas organizações são membros do mesmo movimento.

Este movimento social, que tem sido chamado de "livre circulação da cultura", tem uma história de trinta anos. Ele incorpora elementos reminiscentes dos movimentos de trabalhadores anteriores: os elementos da luta de classes, a agitação política e a economia radical. O núcleo deste movimento, os trabalhadores das áreas tecnológicas, tem estado envolvido em conflito com a classe dominante sobre a natureza política e econômica da própria informação. Como o demonstra o caso Wikileaks, os resultados desta luta terão implicações para todos nós. O movimento pela cultura livre existe como conseqüência da economia política da internet. Os computadores pessoais transformaram radicalmente a natureza econômica da informação. Antes da década de 1970, um determinado pedaço de informação estava necessariamente ligado a um objeto físico - um pedaço de papel, um LP, um rolo de filme. Indústrias inteiras foram construídas para a venda de papel, LP's e rolos de filme com particulares bits de informação neles impressos. Em seguida, chegou o computador pessoal e, de repente, a informação de todos os tipos podia ser duplicada infinitamente a um custo mínimo - e distribuída pela internet para uma audiência global. Todo o ser humano poderia ter uma cópia de cada obra de arte já criada, pelo custo de uma ligação de banda larga.
Nos termos da economia capitalista, todo o bem tem um custo marginal, que é o custo de produzir mais um item dele. Os computadores reduzem o custo marginal da informação a zero, e a internet facilita a distribuição, legal ou não, tornando-a absolutamente trivial. A informação tornou-se "não-excludente" (a cópia não pode ser evitada) e "não-rival" (se eu lhe der a informação, mantenho a minha cópia dessa mesma informação). Nesta situação, é quase impossível tratar a informação como uma mercadoria - como a economia capitalista o definiria, a informação torna-se um bem público, como as estradas ou a defesa nacional.
Como resultado, há uma contradição dentro do capitalismo. A mais óbvia fonte de lucro, a própria razão para uma sociedade capitalista investir em tecnologia da informação, é a de extrair valor através da venda de informação como uma mercadoria. Enquanto isso, a tecnologia da informação tem vindo paulatinamente a prejudicar a viabilidade de tratamento da informação como propriedade.
Enquanto os computadores tornaram os "direitos de propriedade intelectual" inexeqüíveis, o método de recurso para privatizar a informação é o segredo. A recolha de informação e o sigilo é o modelo de negócios do Google e do Facebook - a recolha e venda de informações sobre nós para seus anunciantes. A recolha de informação e o sigilo são também as funções essenciais do moderno Estado securitário. É neste contexto que a imensa importância social das ações Wikileaks se torna aparente: Wikileaks é um elemento-chave do assalto pelo movimento de cultura livre aos os bastiões da informação privatizada.
A atual situação foi prevista por hackers visionários há mais de trinta anos. Eles tomaram como missão garantir a vitória da cultura livre sobre a cultura da propriedade, da organização aberta sobre a fechada, e da privacidade sobre o Big Brother.
O expressão hacker antecede o computador pessoal, tendo origem no Tech Model Rail Club do Massachussets Institute of Technology (MIT) na década de 1950. Entre os geeks, é usada para denominar um indivíduo tecnicamente habilitado, atraído pela aprendizagem e pela experimentação, uma pessoa que acredita em compartilhar o que aprendeu com a comunidade.
A cultura hacker propriamente dita teve origem na década de 1970, em clubes amadores dedicados aos primeiros computadores pessoais. Os hackers rapidamente se habituaram a copiar software livremente - afinal, não custa nada compartilhar, e a leitura do "código fonte" do software é sempre educativa. O software tornou-se a primeira informação moderna boa: infinitamente replicável, sem nenhum custo.
No entanto, outros já estavam procurando mudar a natureza do software, para transformá-lo em uma mercadoria. De outra forma, perguntam-se eles, como é que os criadores poderiam ganhar o seu pão? Em 1976, Bill Gates reclamou :
“Como a maioria dos amadores deve saber, quase todos vocês roubam o seu software. O hardware tem de ser comprado, mas o software é algo para compartilhar. Quem se importa se as pessoas que trabalharam nele são pagas? É isso justo?... Quem pode se dar ao luxo de fazer um trabalho profissional para nada?... O fato é que ninguém além de nós tem investido muito dinheiro em software amador... mas haverá muito pouco incentivo para fazer o nosse software livremente disponível para amadores. Muito diretamente, aquilo que vocês fazem é roubo” (2).
Este foi um aparecimento precoce da nova contradição no capitalismo - um conflito entre o caminho de maior produção (cópia ao infinito) e a fonte de lucros existentes (escassez artificial). Karl Marx defendeu que o conflito entre novos e velhos modos de produção está no centro da mudança social:
O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência. ... Em um determinado estádio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou - isso se limita a exprimir a mesma coisa em termos legais - com as relações de propriedade no âmbito das quais têm atuado até aqui. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações se transformam em seus grilhões. Começa então uma época de revolução social. As mudanças na base econômica levam mais cedo ou mais tarde a uma transformação da imensa superestrutura.” - Karl Marx, ‘Contribuição à Crítica da Economia Política’ (3).
Como Marx poderia ter previsto, o apelo de Gates caiu em ouvidos moucos. Até meados de 1980, o compartilhamento de software nunca fora tão fácil e os Internet Bulletin Boards generalizaram-se. Hackers e outros interessados fariam chamadas telefónicas de computador-a-computador para participar em discussões, ou fazer o download de cópias ilegais de software. Surgiram conferências e organizações hacker, incluindo o esquerdista Chaos Computer Club, na Alemanha. Mais tarde surgiram o apolítico DefCon e o "liberal" HOPE nos Estados Unidos.
A partir de suas experiências na nova tecnologia, essa subcultura anarquista desenvolveu um senso comum político e moral, hoje conhecida como a Ética Hacker:
- O acesso a computadores - e a qualquer coisa que possa lhe ensinar algo sobre a maneira como o mundo funciona - deve ser ilimitado e total.
- Desconfie da autoridade - promova a descentralização.
- Você pode criar arte e beleza em um computador.
- Os computadores podem mudar sua vida para melhor.
- Toda a informação deve ser livre.
- Steven Levy (4)
A semelhança entre esta ética e concepções antigas de uma sociedade igualitária tem sido observado pelo grupo de discussão do Projeto Oekonux :
“A crítica das relações mercantis e do dinheiro, a rejeição da hierarquia e das fronteiras, a crítica do trabalho contemporâneo e a reivindicação da paixão e da liberdade como principais motivações, da cooperação e da partilha como as bases para novas relações, tudo isso é encontrado, a um grau mais ou menos elaborada e coerente, na "ética hacker". Ora, estes são elementos que fazem parte da fundação do projecto comunista” (5).
Alguns pensadores procuraram ir além de uma ética e desenvolver um programa político. O primeiro e mais importante teórico anti-propertário a emergir do mundo hacker e organizador consequente desta causa foi Richard M. Stallman. Stallman é uma figura controversa, o geek dos geeks, nem sempre sendo educado com seus oponentes políticos. Apesar de suas aparentes deficiências no tratamento interpessoal, ele é amplamente respeitado como o fundador do movimento de cultura livre, talvez a primeira pessoa a compreender a nova situação econômica e, certamente, a primeira a fazer alguma coisa concreta sobre isso.
Stallman foi conduzido para a ação quando viu a natureza do software começar a mudar - cada vez mais, as empresas mantinham em segredo os detalhes necessários para alterar os seus programas, e processavam quem quer que distribuísse cópias. O primeiro bem informático moderno foi-se tornando uma mercadoria, contra a sua própria natureza econômica e contra a ética hacker.
Em resposta, Stallman criou uma nova ideologia, o Software Livre (6), declarando que o software-como-mercadoria era moralmente condenável: O software livre é uma questão que tem a ver com a liberdade dos usuários executarem, copiarem, distribuirem, estudarem, modificarem e melhorarem o software.
- A liberdade de executar o programa, para qualquer finalidade.
- A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo às suas necessidades.
- A liberdade de redistribuir cópias de modo a que você possa ajudar ao seu próximo.
- A liberdade de aperfeiçoar o programa, e liberar os seus aperfeiçoamentos para o público, de modo que toda comunidade se beneficie.
(Note que "livre" (free) aqui não se refere aos custos, como em "free beer", mas à liberdade, como em "free speech" - esta palavra tem dois significados em Inglês).
Como trabalhadores informáticos, Stallman e seus colegas possuíam os seus meios de produção e tinham acesso aos meios de distribuição - na década de 1980, tudo o que precisavam para ignorar completamente o capital era um computador e uma linha telefônica. Em 1984, Stallman começou um esforço de colaboração pública para construir um conjunto completo de software que respeite as quatro liberdades, anunciando-a com a seguinte declaração:
“Entendo que a regra de ouro exige que, se eu gosto de um programa, devo compartilhá-lo com outras pessoas que gostam dele. Vendedores de Software querem dividir os usuários e conquistá-los, fazendo com que cada um deles concorde em não compartilhar com outras pessoas. Eu me recuso a quebrar a solidariedade com outros usuários deste modo. Eu não posso, em boa consciência, assinar um acordo de confidencialidade ou de um contrato de licença de software. ... Para que eu possa continuar a usar computadores sem desonra, decidi juntar uma quantidade suficiente de software livre para que possa ser capaz de dispensar qualquer software que não seja livre” (7).
Ele fundou um grupo político, a Free Software Foundation, e em colaboração com o advogado e líder do software livre Eben Moglen, popularizou outro conceito novo – o copyleft. Uma licença "copyleft" é uma licença de direitos autorais especial que traz consigo uma protecção legal às quatro liberdades. Ela concede a qualquer um o direito de modificar e compartilhar um bem informático, desde que as modificações sejam também compartilhadas de acordo com a mesma licença. Em outras palavras, você pode tratar a obra como propriedade comunal, desde que as suas próprias modificações também se tornem propriedade comunal.
Para os hackers, ávidos leitores de ficção científica, parece óbvio que num futuro próximo todas as informações da humanidade seriam armazenadas em uma rede mundial de computadores. Stallman percebeu que, se os interesses do Estado ou privados controlassem o software rodando na rede, eles poderiam controlar ou censurar qualquer informação que quisessem - e decidiu que a humanidade como um todo deve ter a capacidade de compartilhar e modificar o software. Esta ideia foi mais completamente desenvolvida pelo advogado Lawrence Lessig, quando ele cunhou a frase código é lei (8).
“No espaço real nós reconhecemos como as leis regulam - através de constituições, estatutos e outros códigos legais. No ciberespaço, devemos entender como regula um diferente "código" - como o software e o hardware (ou seja, o "código" do ciberespaço), que torna o ciberespaço aquilo que ele é, também regula o ciberespaço tal como ele é. Como diz William Mitchell, este código é a "lei" do Ciberespaço. "Lex Informatica", como Joel Reidenberg primeiro disse, ou, melhor ainda, "código é lei".
O ciberespaço é regulado por software, tanto quanto o mundo real é regulamentado por lei. Daqui resulta que, se devemos ter uma cultura livre, então o software tem de ser livre - de outra forma, os interesses corporativos e estatais terão uma inaceitável capacidade de recolher e censurar a informação.
Essas tendências - o fim da escassez na informação, a distribuição dos meios de produção nas mãos dos profissionais da informação, o desenvolvimento de uma comunidade hacker mais ampla com a sua ética própria, a emergência de líderes ideológicos e organizações, a criação de uma teoria jurídica – combinaram-se na década de 1990 para produzir um evento econômico extremamente raro: a chegada de um modo de produção completamente novo. O primeiro exemplo deste novo modo foi o projeto Linux.
No início dos anos 1990, o Projecto GNU da Free Software Foundation (FSF) tinha montado todo o software livre necessário para correr num computador, com excepção de um, conhecido como o "cerne” (kernel). O hacker finlandês Linus Torvalds criou o cerne livre "Linux" como um passatempo, licenciando-o sob a licença copyleft da FSF. O passatempo de Linus logo se tornou o primeiro grande projeto de engenharia a ser realizado totalmente online, e se desenvolveu mais rápido do que seria previsível. Vinte anos depois, ele se beneficiou de milhões de contribuições de muitos milhares de trabalhadores em todo o mundo.
Software Livre - construído sobre GNU e Linux - é agora onipresente em servidores de internet, e recentemente começou a liderar o mercado de smartphones (graças ao Android, da Google). O ecossistema GNU / Linux é um fenômeno completamente original - um projecto de engenharia e artístico de um âmbito imenso, conduzido ao longo de 30 anos, usando uma força de trabalho global, sendo a maioria dos trabalhos proveniente de voluntários que, pura e simplesmente, tiveram gosto em contribuir.
Eric S. Raymond, em seu ensaio seminal ‘A Catedral e o Bazar’, fez uma primeira tentativa de explicar o que estava acontecendo:
“Linux foi o primeiro projeto para o qual foi feito um esforço consciente e bem sucedido para usar todo o mundo como sua reserva de talentos. Eu não acho que seja uma coincidência que o período de gestação do Linux tenha coincidido com o nascimento da World Wide Web, e que o Linux tenha deixado a sua infância durante o mesmo período de 1993-94, que viu a descolagem da indústria de ISP e a explosão do interesse na Internet por parte do público comum. Linus foi a primeira pessoa que aprendeu a jogar pelas novas regras que o acesso alargado à Internet tornou possíveis. Embora uma Internet barata fosse condição necessária para que o modelo do Linux evoluísse, eu acho que não era, por si só, condição suficiente. Outro fator vital foi o desenvolvimento de um estilo de liderança e um conjunto de formalidades cooperativas que permitiu aos empreendedores atrair co-empreendedores e obter o máximo proveito do meio. Mas o que é este estilo de liderança e quais são essas formalidades? Eles não podem basear-se em relações de poder - e mesmo que pudessem, a liderança por coerção não produziria os resultados que vemos.”
Os trabalhadores da informática foram cooperando globalmente e sem coerção para produzir bens que se destinavam a ser propriedade coletiva. Relações de produção não-coercivas foram inevitáveis, dada a verdade económica subjacente - um computador, acesso à Internet, e o software livre possuído comunitariamente são a totalidade do capital produtivo que um programador de computador precisa. A natureza ad-hoc, cooperativa e voluntária do desenvolvimento do GNU / Linux, é exatamente o comportamento que Marx previu que emergisse do livre acesso ao capital produtivo:
“Dentro da sociedade cooperativa baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho empregue nos produtos não aparece aqui como o valor desses produtos, como uma qualidade material possuída por eles, pois que agora, em contraste com a sociedade capitalista, o trabalho individual já não existe de forma indireta mas diretamente como um componente do trabalho total. A expressão "rendimentos do trabalho", objectável também já hoje, por causa de sua ambigüidade, perderá assim todo o sentido. ... O trabalho tornar-se-á não apenas um meio de vida, mas a primeira das necessidades vitais.” - Karl Marx, ‘Crítica do Programa de Gotha’ (9).
Sempre se limitando, nas suas análises, à propriedade da informação, devido à sua natureza não-escassa, os filósofos do movimento do software livre começaram a soar como comunistas libertários - ainda que muitos na comunidade não subscrevam necessariamente políticas de esquerda. O advogado da FSF Eben Moglen defendeu energicamente essa causa, em seu ensaio ‘Anarchism Triumphant’ (10):
“No centro da revolução digital, com os bitstreams executáveis que tornam tudo o mais possível, os regimes proprietários não só não fazem as coisas melhor, como podem mesmo fazê-las de uma forma radicalmente pior. Os conceitos derivados da propriedade, para além de tudo o mais que possa estar errado com eles, não encorajam e têm na verdade retardado o progresso. Na sociedade em rede, o anarquismo (ou, mais propriamente, o individualismo anti-possessivo) é uma filosofia política viável ... porque a deserção é impossível, as viagens gratuitas são bem-vindas, o que resolve um dos enigmas centrais de ação coletiva em um sistema social proprietário.”
Alguns hackers ficaram descontentes com esta evolução ideológica. Alegando que o negócio estava a ser perturbado pela retórica da FSF, Eric S. Raymond formou a separatista Open Source Initiative, focalizando a discussão sobre a superioridade técnica dos modelos de desenvolvimento aberto, evitando falar sobre a problemática da "liberdade" e a natureza da propriedade.
“O Raymond tinha sido convidado pela Netscape para ajudá-los a planejar seu navegador de código-fonte público... podíamos, finalmente, fazer com que o mundo corporativo ouvisse o que a comunidade hacker tinha a ensinar sobre a superioridade de um processo de desenvolvimento aberto. Os conferencistas decidiram que era hora de dispensar a atitude moralizadora e de confronto que havia sido associada no passado ao "software livre", passando a vender a idéia rigorosamente, pelos mesmos motivos pragmáticos, de puro negócio, que motivaram a Netscape. Eles debateram táticas e um novo rótulo, o "Open source", contributo de Chris Peterson, foi a melhor coisa que foram capazes de produzir”.
A Open Source Initiative ajudou a fazer com que mundo do negócio encarasse mais à vontade o mundo do software livre, mas a internet continuou a ter um relacionamento conturbado com o capitalismo.
A partir da década de 1990, os hackers e os artistas acharam-se presos em uma intensificação do conflito de classes, enquanto os donos de propriedade intelectual manipulavam o processo político para reforçar as leis que protegem o estatuto proprietário da informação, mesmo sendo esse estatuto cada vez mais difícil de impor, na prática. Para os hackers, isso só poderia ser visto como uma tentativa de extrair uma renda desnecessário de um recurso naturalmente abundante.
"Proprietários de Conteúdos", alarmados com o surgimento de sites de compartilhamento de arquivos, começaram a construir fechaduras digitais, chamados Digital Rights Management (DRM), incorporando-os em DVDs, mp3s e até em e-livros. A comunidade hacker foi profundamente ofendida com a ideia de livros que não podiam já ser revendidos ou emprestados. Deu-se logo por tarefa quebrar todos estes cadeados, de forma mais rápida ainda do que eles podiam ser concebidos e projetados. A luta de classes estava sendo travada simultaneamente nos pontos de produção, de informação e de consumo, porque no mundo dos computadores o local de produção é o local de consumo.
Sob intensa pressão da indústria da música, vários países, incluindo os Estados Unidos, implementaram leis proibindo toda e qualquer tecnologia capaz de contornar o DRM para permitir a cópia. Seguiu-se uma série de processos legais de alto perfil, o mais famoso dos quais foi o do programador russo Dmitri Skylarov, que foi preso depois de dar uma conferência nos Estados Unidos, explicando como quebrar o DRM dos e-livros da Adobe.
Sob ataque crescente, as comunidades mais amplas dos geeks e dos hackers começaram a radicalizar-se na defesa da liberdade de expressão e da informação livre. A Electronic Frontier Foundation foi criada para oferecer apoio jurídico. Vários grupos de hackers aprovaram objectivos políticos, na maioria das vezes visando garantir a liberdade de expressão e a defesa da internet livre.
Os hackers estavam lutando, mas durante a década de 2000, os meios de produção e distribuição para todo o tipo de artistas tornaram disponíveis estes bens a qualquer pessoa com um computador - o software livre passou a permitir a criação de uma cultura verdadeiramente livre.
Lawrence Lessig, que havia previsto isso mesmo como parte da sua teoria "código é lei", fundou a Creative Commons, uma organização dedicada a dar a escritores, músicos e artistas individuais, meios fáceis de compreender para permitir que outras pessoas compartilhem e modifiquem o seu trabalho, com o objetivo declarado de levar as liberdades do software livre até toda a arte:
“Não é por acaso que aqueles que entendem isto são as pessoas mais próximas da tecnologia. Nosso desafio será encontrar formas de explicar isto, de modo a que outros criadores o percebam também .... O nosso objectivo, único e abrangente: construir o domínio público, através da construção de projetos que ampliem o leque de trabalho criativo disponível, para que outros possam construir a partir dele.”
Talvez mais importante ainda, eles criaram uma licença copyleft para trabalhos diversos de software. A Creative Commons providenciou o quadro jurídico para o actual florescimento da cultura livre – a Wikipédia, por exemplo, pode ser copiada e modificada por qualquer pessoa, sob uma licença copyleft da Creative Commons. Artistas começaram a aderir ao movimento de cultura livre, insatisfeitos com a noção capitalista que faz deles "criadores de conteúdos" intercambiáveis e seduzidos também pelas possibilidades de distribuição livre, fora do controle das indústrias.
Em 2003, o agora famoso sítio de partilha de ficheiros Pirate Bay, pioneiro em parcerias com artistas do Creative Commons, foi desmembrado do grupo sueco Piratbyrån. Piratbyrån era um grupo de reflexão sobre a natureza da propriedade intelectual, criado por hackers, artistas e ativistas de esquerda para combater o Antipiratbyrån sueco (Bureau Anti-Pirataria). Em 2006, eles fundaram o Partido Pirata, ganhando dois lugares no Parlamento Europeu. E agora existem já Partidos Piratas em países espalhados por todo o mundo, fazendo campanha por leis de propriedade intelectual mais fracas e pela liberdade de expressão na internet.
Pelo menos alguns membros da Piratbyrån são radicalmente anti-propriedade intelectual e a sua visão é conscientemente oposta à concepção da informação como mercadoria:
“A indústria do copyright de hoje gosta de apresentar o problema como se a internet fosse apenas um meio para os chamados "consumidores" obterem os chamados "conteúdos", e que agora só falta termos uma "razoável distribuição" de dinheiro entre ISP’s e a indústria de conteúdos ... É totalmente errado considerar o nosso papel como sendo o de representar "os interesses dos consumidores". Pelo contrário, tudo isto tem a ver com deixar para trás a divisão artificial da humanidade em dois grupos, de "produtores" e "consumidores". ... Estamos agora perfurando a velha aura mass-mediática e estamos em estado de transgressão à sociedade hierarquizada de produtores e consumidores.” - Rasmus Fleischer do Piratbyrån falando no Chaos Communication Congress de 2005 (11).
O sítio The Pirate Bay não era apenas constituído por piratas - eles viam-se a si próprios como tomando deliberadamente ações políticas para enfraquecer a estrutura económica existente, em favor de um novo modo de produção.
O Piratbyrån desfez-se em Junho de 2010 e o próprio sítio The Pirate Bay foi vendido. No entanto, o elevado nível de suporte para a Wikileaks fornecido por ativistas escandinavos e do Partido Pirata sugere que o meio em que cresceram está vivo e de boa saúde.
A Wikileaks também tem raízes em um influente grupo de discussão dos anos 1990, a lista de correio electrónico Cypherpunk. "Cypherpunk", é uma expressão formada a partir das palavras "cifra" (cypher), ou código, e "cyberpunk", um gênero de ficção científica cheio de hackers rebeldes em luta contra tiranos corporativos. Isto nos dá já alguns indicadores soltos sobre a ideologia dos seus membros - que o anonimato e a segurança proporcionados pela criptografia computadorizada ("crypto") poderia criar uma nova sociedade livre de coerção, um sistema conhecido como cripto-anarquia (12).
Muitos de nós vêem um forte crypto como a tecnologia-chave para permitir um novo sistema econômico e social, um sistema que irá desenvolver-se enquanto o ciberespaço se torna mais importante. Um sistema que dispensa fronteiras nacionais, que se baseia na livre troca voluntária (mesmo se anônimo). Em causa estará o fim dos governos como os conhecemos hoje. ... Um crypto forte permite a encriptação inquebrável, as assinaturas não falsificáveis, mensagens eletrônicas cuja pista não pode ser seguida, identidades e pseudónimos indetectáveis. Isso garante que algumas transações e comunicações poderão ser acedidas apenas voluntariamente. A força externa, a lei e a regulação não poderão ser aí aplicadas. Isto é a "anarquia", no sentido de não haver governantes externos e leis.
O cypherpunks estavam à frente do seu tempo, antecipando claramente, por 15 anos ou mais, o uso feito pela Wikileaks das caixas de depósito anônimas e criptografadas na internet – mas, enfim, Julian Assange colaborava regularmente nessa lista de correio. A comunidade hacker criou o próprio futuro sobre o qual costumava especular.
Em um incidente famoso, o cypherpunk Jim Bell publicou um ensaio intitulado ‘Assassination Politics’, que discutiu a criação de um sítio completamente anônimo, onde os usuários poderiam patrocinar o assassinato de políticos corruptos. Bell foi posteriormente preso por espionar agentes federais, os quais haviam sido eles próprios enviados para espiá-lo por ter escrito aquele ensaio.
Assange lançou as bases filosóficas para a Wikileaks quando respondeu a ‘Assassination Politics’ em seu texto ‘O Estado e conspirações terroristas’ (13):
“Como podemos reduzir a capacidade de uma conspiração para agir? ... Podemos dividir a conspiração, reduzindo ou eliminando a comunicação importante entre alguns elos de elevado peso ou muitos elos de baixo peso. Ataques tradicionais sobre grupos de poder conspiratórios, como assassinatos, cortaram ligações de alto peso através do homicídio, do seqüestro, da chantagem, ou marginalizando e isolando de qualquer outro modo alguns dos conspiradores com que estavam conectados. ... Quanto mais secreta ou injusta for uma organização, mais as fugas provocarão o medo e a paranóia em sua liderança e em sua confraria planejadora. Isso deve resultar na minimização de mecanismos eficientes de comunicação interna (um aumento de "sigilo fiscal" cognitivo) e no declínio do sistema cognitivo sistémico, resultando em conseqüente diminuição da capacidade de manter o poder, à medida que o ambiente for exigindo adaptações. Assim, em um mundo onde as fugas são fáceis de operar, os sistemas secretos ou injustos serão golpeados de uma forma não linear, em confronto com os sistemas abertos e justos. Uma vez que os sistemas injustos, pela sua própria natureza, criam adversários e oponentes, e em muitos lugares mal têm a sua supremacia garantida, as fugas em massa deixam-nos singularmente vulneráveis àqueles que procuram substituí-los por formas mais abertas de governação.”
Com um mecanismo único, Assange demonstra as implicações políticas da nova economia da informação. Se todas as informações existentes podem ser copiadas livremente, então as organizações podem se deparar com nenhuma outra opção senão realizar a maioria das suas transacções abertamente. Ele limitou-se aqui a transportar a conclusão de Eric S. Raymond sobre o Linux - que o seu modelo organizacional aberto será sempre mais eficiente que o modelo fechado da Microsoft - para a esfera política.
A Wikileaks é a primeira realização concreta do sonho cripto-anarquista: fugas completamente anônimas, golpeando fortemente a tirania. No entanto, também destacou os pontos fracos na Internet livre, sobrevivendo grandes perigos para a liberdade de expressão e para o novo modo de produção.
Talvez o mais óbvio é que as grandes corporações controlam a infra-estrutura física da Internet - os grandes servidores e todos os fios reais que ligam de lugar para lugar. Outro perigo é a monopolização de alguns serviços - rede social pelo Facebook, pesquisa pelo Google. E como o demonstrou o recente corte dos fundos à Wikileaks por parte de PayPal, Visa e Mastercard, o perigo de ação concertada estatal-corporativa para negar a liberdade de denúncia e crítica tornou-se flagrantemente real.
Como lhe é típico, a comunidade hacker está trabalhando em soluções já há algum tempo. Há projetos para criar redes wireless em "malha" e projetos para criar alternativas abertas e distribuídos para o Facebook e o Google. Existe ainda o projeto Bitcoin (14), que tem a meta ambiciosa de criar uma moeda virtual distribuída.
Marx descreveu, em traços largos, as formas pelas quais a economia política molda a sociedade e a história, mas deixou os detalhes para serem preenchidos pelos que forem vivos na sua época. A militância, organização e ideologia que vemos hoje na comunidade hacker são a consequência material de um novo modo de produção, uma mudança fundamental na economia política da informação. O movimento pela cultura livre derrotou (até agora) todas as tentativas, tanto legais como tecnológicas, para restabelecer a escassez de informação. Se Marx estava certo, então isso deve-se simplesmente a que os ventos da História estão atrás de nós.
Não há como prever onde isto vai acabar - alguns hackers teorizam que, no futuro, a fabricação será descentralizada da mesma forma que a produção de informações, uma fábrica em miniatura em cada casa, se quiser. Os processos que favoreçam a descentralização e a abertura da organização vão continuar a ganhar força, assim como a reação contra esses processos. A única certeza é que a natureza econômica da informação mudou para sempre. Esse fato ainda continuará transformar a nossa sociedade daqui a um século.
) Alistair Davidson é um apoiante da organização britânica ‘Liberty & Solidarity’ (http://www.libertyandsolidarity.org/), em cujo site este ensaio foi publicado em 23 de dezembro de 2010. O autor usa os conceitos marxistas de “modo de produção” e “relações de produção” de uma forma algo esquemática e ingénua, mas isso não chega para retirar o mérito e o interesse deste pequeno e notável ensaio. Licenciado sob Creative Commons Attribution-NoDerivatives 3,0.
_________
NOTAS:
(1) Geek e hacker são termos de uso corrente na cultura informática, cujas definições podem ser encontradas na Wikipedia em língua portuguesa.
(2) Pode ser lido em linha o texto completo da ‘Carta aberta aos amadores’ de William Henry Gates III, já então a trilhar o caminho que o tornaria o homem mais rico do mundo.
(3) Karl Marx, ‘A Contribution to the Critique of Political Economy’ no Marxists Internet Archive (MIA).
(4) Para mais desenvolvimentos, leia-se o artigo sobre hacker ethics na Wikipedia.
(5) Raoul Victor, ‘Free software and market relations’.
(6) Uma definição de software livre pode ser encontrada na página de filosofia do movimento.
(8) Página de Lawrence Lessig.
(9) Karl Marx, ‘Critique of the Gotha Programme’ no Marxists Internet Archive (MIA).
(10) Eben Moglen, ‘Anarchism Triumphant’. De Eben Moglen, ‘O Comuneiro’ publicou já, no seu nº 3 (Setembro de 2006), ‘O Manifesto dot.Comunista’.
(11) Palle Torsson e Rasmus Fleischer, ‘The grey commons’, discurso do Piratbirån ao Congresso de Comunicação Chaos, realizado em Berlim em Dezembro de 2005.
(12) Cf. The Cyphernomicon .

(13) Leia-se ‘Julian Assange and the Computer Conspiracy; “To destroy this invisible government”’.

(14) Cf. Bitcoin .

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